por Lucas G. Freire
Os jornais têm relatado que o juiz que negou liberdade a dois manifestantes dos Black Blocs utilizou, na sua decisão, uma frase de efeito empregada por comentaristas políticos de direita.
O juiz teria dito que os Black Blocs fazem parte da chamada ‘esquerda caviar’. O termo esquerda caviar, obviamente, não é neutro, nem do ponto de vista político nem teórico.
Espera-se dum sistema de justiça que ele seja politicamente e teoricamente neutro. Essa expectativa é ilusão. Um sistema de justiça ou promove a justiça (e, por isso, pode ser acusado de apoiar uma determinada perspectiva política e teórica) ou promove a injustica (e, por isso, pode também ser acusado de apoiar uma determinada perspectiva política e teórica).
Os revolucionistas esperam implantar sua revolução (seja qual for) e mudar o curso do sistema de justiça. Os que favorecem a situação atual esperam que o sistema de justiça mantenha a situação atual. A oposição, nos dois casos, denunciará esse uso ‘político’ do sistema de justiça.
Até aqui, nenhuma novidade. Porém, é possível uma terceira atitude, e é essa atitude a meu ver que deve marcar a política cristã.
Para começar, o fato de integrantes dos Black Blocs serem incoerentes com o ‘esquerdismo’ que defendem, ao ter acesso ao ‘caviar’ não deveria ter tanto peso no sistema judiciário. A hipocrisia do réu não o faz necessariamente mais ou menos culpado.
Em resposta, a política cristã aprecia e honra o serviço desse juiz à nação quando ele promove a justiça pública e combate a violência, a agressão, o roubo, o vandalismo dos Black Blocs.
A política cristã vai ainda mais longe e mantém o direito do grupo se manifestar de forma não-violenta (coisa que o juiz parece ter negado, por conta da má conduta de vários integrantes do grupo). Isso é essencial: se um grupo tem uma certa causa, é na esfera pública que essa causa poderá ser refutada, exposta e rejeitada.
O que homens como Althusius e Milton afirmaram na época da Reforma Protestante vale também para essa situação: podemos discordar do discurso, e a melhor forma para que ele suma do mapa é exatamente dando-lhe o espaço necessário para ser razoavelmente avaliado pela audiência, e adequadamente rejeitado.
Falando em discurso, um outro ponto a ser levantado é que o uso de chavões em geral obscurece o debate, embora eles se proponham a simplificá-lo. O termo ‘esquerda caviar’ tem sido empregado na mídia brasileira como um chavão mágico que supostamente explicaria vários fenômenos.
Esse tipo de dinâmica não é unilateral. A ‘esquerda’ tem seus cacoetes. Já ouviu falar de ‘coxinha’, de ‘privilegiado’, ou de ‘alienado’? A ‘direita’ tem os seus. ‘Marxista cultural’. Aliás, veja como a própria definição de ‘direitista’ e ‘esquerdista’ é plástica. Para o ‘esquerdista’, qualquer um à sua direita é um direitista. E vice-versa.
Só que esquerda-direita é uma dicotomia unidirecional. Ela desenha uma tabela com duas colunas, e lista os posicionamentos ‘direitistas’ e ‘esquerdistas’ para cada assunto. Israel? Direita. Palestina? Esquerda. Estados Unidos? Direita. Cuba? Esquerda. Se os problemas fossem assim tão simples, já teriam sido resolvidos.
Reconhecendo a complexidade da esfera pública, a política cristã tenta se desvencilhar dessa dicotomia. O foco principal da política cristã deve ser a justiça pública. Onde houver iniciação de agressão, o cristão denunciará tal injustiça.
Por isso, a política cristã se propõe a criar um vocabulário novo, e um novo ambiente de civilidade na esfera pública. E, talvez, o cristão poderá tentar evitar os chavões clássicos e enxergar o interlocutor como um ser humano tão complexo como a realidade que ele tenta comentar. Uma pessoa de carne e osso, nem sempre coerente. E isso talvez sirva de ponte entre um lado e outro do espectro político.
Se não servir, ao menos será uma forma dupla de amar o próximo como a nós mesmos. No debate privado, isso significa ouvir e não caluniar. Na esfera pública, isso significa concentrar a política na promoção da justiça pública, coisa que um juiz cristão ou não-cristão, esquerdista ou direitsta, é capaz de fazer se quiser, independente de qual seja seu livro de cabeceira.