Deus e o imposto sobre propriedade

por Rousas John Rushdoony

Muito pouco é dito, nos dias de hoje, acerca do ensino bíblico sobre propriedade e tributação. E com justiça: estamos muito distantes do estilo de vida bíblico.

Não havia impostos sobre propriedade na Bíblia. Como observou H. B. Rand, em seu Digest of the Divine Law [Sumário da Lei Divina], “era impossível desapropriar os homens de sua herança usando-se a lei do Senhor, uma vez que não havia incidência de impostos em relação à terra. Independentemente dos comprometimentos pessoais de um homem, ele não podia deserdar sua família sendo desalojado de sua terra para sempre”. Diversas e diversas vezes a Bíblia declara que “do Senhor é a terra” (Êx 9.29; Dt 10.14; Sl 24.1; 1Co 10.26 etc.), e somente ele pode cobrar impostos por ela. O dízimo é o imposto de Deus para o uso da terra; não é um donativo para ele, mas um imposto obrigatório, e somente aquilo que passa dos dez por cento é doação para Deus. Essas doações são chamadas de “ofertas voluntárias” (Dt 16.10-11; Êx 36.7; Lv 22.21; etc.), pois dependiam da voluntariedade do homem, dado que o dízimo é obrigatório.

O governo civil do Estado não podia tributar a terra, pois ela não é propriedade dele, mas de Deus, e Estado algum tem o direito de cobrar impostos das propriedades de Deus. O sustento do governo civil se dava por meio de um aumento fiscal, isto é, um imposto sobre produção.

H. B. Clark, em Biblical Law [Lei bíblica], observou que Samuel declarou ser um sinal de tirania e maldade quando o governo civil exigiu para o seu sustento tanto dinheiro quanto Deus em seu dízimo. Disse Samuel acerca do tirano: “Ficará com uma décima parte dos cereais e das uvas que vocês colherem, para dar aos seus oficiais e aos seus servidores. […] Ficará com uma décima parte dos rebanhos de vocês, e vocês serão seus servos” (1Sm 8.15, 17 — NAA). Hoje, o governo toma mais do que um dízimo da nossa renda: ele toma aproximadamente 45 por cento!

Os Estados Unidos foram fundados por cristãos que estabeleceram suas colônias sobre essas leis bíblicas: eles isentavam a propriedade de impostos para proteger a liberdade dos homens. Em sua primeira sessão, em 1774, o Congresso Continental negou que o Parlamento pudesse cobrar impostos sobre propriedade legítima. Como Gottfried Dietz declarou, “quanto à propriedade, os delegados consideraram que ela deveria ser livre de confisco e tributação”.

A ideia de um imposto sobre a propriedade veio aos poucos, tendo aparecido primeiramente na Nova Inglaterra. Os antigos padrões bíblicos sucumbiram à propagação do deísmo, do unitarismo e do ateísmo. Esses incrédulos viam o estado como o salvador do homem, e, portanto, preferiram colocar mais e mais poder nas mãos dele.

O imposto sobre a propriedade foi combatido em muitas regiões, especialmente no Sul, onde a “Reconstrução” pós-Guerra Civil fez dela uma arma para destruir a antiga ordem.

Hoje, o Senhorio do Deus triúno está sendo negado; o dízimo é negligenciado; o poder do estatismo está crescendo, e as leis fiscais estão obrigando os homens a pagar aluguel por suas propriedades. A propriedade foi determinada por Deus para estabelecer os homens em liberdade; agora ela está sendo tomada deles, e a liberdade está declinando.

Se os homens reconhecessem a soberania de Deus, devolvessem o dízimo de Deus em prol de causas verdadeiramente cristãs e depois trabalhassem para libertar a terra da tirania da tributação, veríamos um grande ressurgimento da liberdade. Esta é uma causa pela qual trabalhar. Comece com você mesmo.

Fonte: A Word in Season: Daily Messages on the Faith for All of Life, Volume 6, pp. 22-24.

Tradução de Leonardo Bruno Galdino.

Revisão de Márcio Santana Sobrinho.

O custo cultural da regulagem econômica

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por Andrew Sandlin

Vivemos em meio a uma revolução econômica. O fato de que ela tem nos engolido apenas gradualmente não a torna menos revolucionária. É uma revolução moral do mesmo jeito. Economia é uma questão moral. Não é uma questão sobre a qual os cristãos podem simplesmente concordar em discordar. É incrível a forma como muitos cristãos se opõem ao aborto e ao “casamento” homossexual, mas rejeitam opor-se ao Obamacare e aos programas do estado de bem-estar social. Aparentemente, eles estão dispostos a defender o sexto mandamento (“Não matarás”) e o sétimo (“Não adulterarás”), mas não o oitavo (“Não furtarás”). O roubo não é de algum modo santificado somente porque é praticado pelo Estado ou pelo governo federal. Toda propriedade pertence, em última instância, a Deus, mas a Bíblia claramente exige a inviolabilidade da propriedade individual[1]. A tributação é legítima somente até o ponto em que ela financia o papel legítimo do governo. O problema hoje em dia, como se sabe, é que o governo tem ampliado consideravelmente seu papel e, portanto, extraído – quer dizer, roubado – dinheiro para sustentar-se.

Na medida em que nossa cultura se torna mais secular, ela se torna mais socialista. O socialismo é uma forma de providência secular. Quando já não confiamos mais que Deus nos supre, voltamo-nos para o Estado como a nossa divindade toda-suficiente[2]. É por isso que sociedades cada vez mais seculares são sempre sociedades cada vez mais socialistas, por mais que nossos amigos libertários seculares se ofendam com esse fato. A secularização da sociedade não produz a sociedade secular do livre-mercado imaginada por pessoas como Ayn Rand. Ela produz a sociedade socialista mais próxima a tipos como Karl Marx.

Mas há um custo moral da regulagem econômica não menos repulsivo do que o roubo estatal: a busca da utopia[3]. Os esquerdistas parecem sempre ocupados com a arrecadação fiscal coercitiva a fim de criar uma sociedade justa ou igual (de acordo com a definição deles, claro). Alguns cidadãos são muito ricos; outros, muito pobres, e a função do Estado é criar uma igualdade maior. Este é o princípio fundamental do marxismo ateu no qual até mesmo cristãos professos (como Jim Wallis e Sojourners) têm investido. É uma forma de regulagem econômica que a Bíblia proíbe. E ela tem custos, e com isso eu não me refiro principalmente ao custo para pessoas que dão duro e têm de entregar seu dinheiro suado ao governo para ser usado por burocratas elitistas. O problema é ainda mais profundo do que isso.

O livro de Angelo Codevilla, The Character of Nations, mostra que as leis e costumes de uma nação tendem a criar (ao longo do tempo) um tipo peculiar de cidadão. Ele demonstrou, apresentando fatos, que as pessoas na União Soviética, por exemplo, tinham aspirações, comportamento e hábitos diferentes dos americanos. Esta não é uma questão racial, mas cultural. As leis e costumes dos Estados Unidos incentivavam e desincentivavam formas de comportamento diferentes daquelas que os diversos tipos de leis faziam na União Soviética. A cultura soviética criou um tipo diferente de ser humano. Ao longo do tempo, o comportamento instilado por um governo fica enraizado em uma cultura.

A regulagem econômica nos Estados Unidos, hoje em dia, está criando, gradualmente, um novo tipo de indivíduo. Este indivíduo, desde sua infância, sente-se no direito a um certo estilo de vida, a um nível específico de educação e a uma qualidade especial de assistência médica. Em gerações anteriores, dentro de uma cultura cristã, entendia-se que esses prazeres de vida eram recompensas do investimento diligente e criterioso. Hoje, contudo, tais prazeres têm sido reduzidos a benefícios sociais; o trabalho duro e o investimento criterioso têm sido retirados da equação. Uma vez que a regulagem econômica cumpriu esses benefícios, por ora, de qualquer modo, os indivíduos passam a contar com ela. A regulagem econômica criou um novo tipo de indivíduo, alguém para quem a sabedoria, a inteligência, a gratificação adiada, o orgulho de ser proprietário e a preocupação com as gerações futuras são praticamente irrelevantes. E fácil culpar os jovens na casa dos vinte anos que se recusam a deixar a casa de seus pais e arranjar um trabalho para sustentarem-se, embora esperem TV a cabo, Internet e ingressos grátis para o mais novo show do Coldplay. Sim, eles possuem a sua parcela de responsabilidade. Mas maior parte da culpa deve ser lançada aos pés da nossa cultura e seu governo: a regulagem econômica está envolvida na criação desses jovens.

Sugiro, portanto, que o custo mais pernicioso da regulagem econômica não é a estagnação econômica, que é de fato opressiva, mas a estagnação ontológica – em outras palavras, essa política, ao longo do tempo, cria um tipo de indivíduo diferente e moralmente inferior.

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Fonte: Blog do P. Andrew Sandlin.

Tradução de Leonardo Bruno Galdino.

[1] John M. Frame, The Doctrine of the Christian Life (Phillipsburg, New Jersey: P & R Publishing, 2008), 797–798.

[2] P. Andrew Sandlin, Economic Atheism (Mount Hermon, California: Center for Cultural Leadership, 2011), 7–12.

[3] Thomas Molnar, Utopia, The Perennial Heresy (New York: Sheed & Ward, 1967).

 

Polícia sem greve

Hoje (5), o Supremo Tribunal Federal decidiu que “o exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública”.

A notícia provocou reações diversas entre os policiais, inclusive aqueles que professam a fé cristã. Estaria o STF correto em proibir as “categorias” ligadas à segurança pública de exercerem o seu “direito” constitucional de fazer greve?

O “direito” de greve não é ilimitado

Antes de tudo, dois esclarecimentos jurídicos são necessários. Primeiro, a Constituição brasileira expressamente proíbe a greve dos militares, entre os quais se incluem, como força auxiliar e reserva do Exército, as polícias militares estaduais (art. 142, § 3.º, IV, e art. 144, § 6.º). Segundo, o texto constitucional também possibilita a limitação do direito de greve dos servidores públicos em geral (art. 37, VII), embora o legislador brasileiro, geralmente ávido por criar leis, jamais tenha se dado ao trabalho de mexer nesse “vespeiro” para limitar o exercício da greve pela poderosa casta dos servidores.

O fato é que, mesmo na excessivamente permissiva Constituição brasileira, o direito de greve não é absoluto nem ilimitado.

Policiais são magistrados civis

No que se refere aos policiais e outros profissionais da segurança pública, há boas razões para se considerar ilegítima e ilícita a prática da greve em geral, como fez hoje a Suprema Corte.

A finalidade precípua do governo civil é punir crimes e permitir que os homens de bem vivam com tranquilidade. Essa é uma vocação divina, tanto que o magistrado é designado “ministro de Deus” na Escritura (Romanos 13.4); e, sendo um chamado do Senhor supremo e Rei de todo o mundo, os oficiais do governo civil hão de lhe prestar contas do bem e do mal que fizeram, se exerceram seus respectivos ofícios “para a sua glória e para o bem público” (Confissão de Fé de Westminster, XXIII.I).

O “poder da espada” empunhada pelo magistrado é o instrumento adequado para que ele cumpra o seu chamado divino de aplicar o “castigo dos malfeitores” e o “louvor dos que praticam o bem” (1Pedro 2.14). Essa espada se refere, primariamente, ao uso legítimo da força na aplicação da justiça pública; ao magistrado cabe retribuir a injustiça cometida, infligindo ao malfeitor um mal proporcional (“castigar” ou “vingar”, na linguagem bíblica). Porém, as atividades de polícia ostensiva e investigativa também podem ser consideradas parte da “espada” recebida pelo magistrado como meio para combater a injustiça pública; a ele cabe (embora não exclusivamente) a defesa e a segurança dos cidadãos. Os policiais, portanto, também são magistrados no sentido bíblico: eles ocupam uma posição de autoridade civil.

Como trabalhadores, os policiais são dignos de seu salário e devem ser tratados com justiça. Como magistrados, eles devem ser bem remunerados, para que ostentem uma vida condizente com a importância e honra de sua vocação. O argumento de Calvino quanto ao direito dos príncipes a uma vida “decorosa” (Instituição, 4.XX.13) pode ser estendido aos agentes da segurança pública, já que também eles são “ministros de Deus” e, sob a autoridade do governante superior, empunham a espada e administram a justiça.

Vingadores, não malfeitores

Porém, o que dizer diante da inegável realidade de que os policiais brasileiros são mal remunerados e submetidos a condições de trabalho que os põem em desnecessário e injustificado perigo? A greve é um meio legítimo de reivindicar melhorias profissionais?

Ao se submeterem a concurso público e serem investidos em seus cargos, os policiais civis e militares receberam a vocação divina – crentes ou não, conscientes disso ou não – de coibir crimes e contribuir para que os homens de bem vivam de modo tranquilo e quieto, com toda a piedade e respeito.

Quando voluntariamente negligenciam esse encargo e deixam de trabalhar, valendo-se do caos social decorrente como instrumento de barganha, os policiais agem com tirania. Em vez de “vingadores” das injustiças, tornam-se eles mesmos os malfeitores: expõem os cidadãos a mais criminalidade, perturbam a vida dos justos e, com isso, demonstram desprezo pela glória de Deus, que os chamou à promoção do bem comum.

Se a ética cristã deslegitima a maioria das táticas dos movimentos grevistas, com maior razão o faz no tocante aos profissionais da segurança pública. Ao descumprirem voluntariamente o seu encargo de promover a defesa e a segurança da população, os policiais não apenas violam o oitavo mandamento (que exige o respeito aos contratos, inclusive entre empregadores e empregados), mas também o sexto, pois expõem a vida dos cidadãos a desnecessário e injusto perigo. Nesse sentido, o Catecismo Maior de Westminster nos lembra de que um dos pecados proibidos no sexto mandamento é “a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários para a preservação da vida” (P&R 142).

No artigo “Polícia de greve”, de 2014, Lucas G. Freire chama a atenção para o contraste entre a ética bíblica e os movimentos paredistas dos policiais:

A polícia precisa sim de melhor equipamento, condição de trabalho, salário digno e treinamento adequado. Que use todas as vias legais para pedir o que precisa.

Por outro lado, quando a polícia faz greve, ela está fugindo do seu chamado de combater o malfeitor. Ela está, na verdade, combatendo o bem e promovendo o malfeitor.

Por mais que o cristão se sensibilize e tenha empatia pelos policiais, nas difíceis condições de trabalho e remuneração a que são submetidos, não se pode deixar de concordar com o Supremo nesta decisão: o exercício do “direito” de greve é incompatível com a atividade policial.

Mais horrível que matar alguém na própria casa

Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar segundo o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará como os juízes lhe determinarem. Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êxodo 21:22-25).

baby-feet-blueEnquanto os juízes usurpam o poder legislativo na nossa nação no ímpeto progressista de legalizar o aborto voluntário a todo custo, é bom refletir um pouco sobre o que as Sagradas Escrituras têm a dizer nessa área.

Ao comentar Êxodo 21, o reformador João Calvino escreve que “o feto, embora envolto no útero de sua mãe, já é um ser humano”. Ele continua, dizendo que “parece ser mais horrível matar um homem na sua própria casa que matá-lo no campo, pois a casa é nosso lugar de refúgio mais seguro”, e que “certamente deve ser visto como algo mais atroz destruir um bebê no útero antes que ele venha à luz” que em circunstâncias normais.

A Lei requer uma punição proporcional ao dano causado – caso a vida seja tirada, a pena de morte se aplica: “darás vida por vida”. É preciso não perder de vista o motivo. Primeiramente, não se trata de mera vingança, e sim de justiça. O texto é claro: se a mulher for machucada e o bebê nascer prematuramente, uma multa deve ser paga, obviamente, não só como punição pela violência colateral causada pela briga entre os homens, mas também como uma forma de pagar pelo tratamento das vítimas. Porém, “se houver dano grave”, então a punição vai além dessa compensação financeira e envolve também uma punição física proporcional à violência causada. Por isso mesmo o texto não prescreve simplesmente uma pena uniforme a todo tipo de violência colateral.

Em segundo lugar, na legislação do Antigo Testamento, a pena de morte não é aleatória, ao contrário do que outras culturas à volta de Israel praticavam, prescrevendo a penalidade máxima, com requintes de crueldade, para qualquer crime mais ou menos ofensivo. Nas leis do Antigo Testamento, há uma correlação entre certos pecados (incluindo crimes graves) e a pena de morte, mas somente naqueles casos em que o próprio Deus é de alguma forma atacado. Há pelo menos dois motivos por que o texto aqui requer “vida por vida”, independente de só a mãe ou o bebê ou ambos serem mortos.

O primeiro motivo é restrito ao povo de Deus antes da vinda do Messias. Dependendo das circunstâncias, haveria possivelmente a esperança de que aquela criança no útero seria o Messias prometido aos ancestrais, a promessa que o povo tanto aguardava. Matar a mãe ou a criança, ainda que por acidente, seria uma forma de atentar contra o próprio Deus e contra o Seu plano prometido nas Escrituras. Cometer semelhante crime nos nossos dias também atentaria contra o plano de Deus revelado nas Escrituras, mas obviamente sem envolver esse aspecto messiânico. Deus revelou nas Escrituras que a vida deve ser promovida, e que principalmente os mais frágeis, como a mulher e o bebê, devem ser protegidos. Portanto, o nosso momento histórico, após a vinda do Cristo, não é desculpa para ignorar com facilidade o crime de matar, mesmo que por efeito colateral, uma criança que ainda não nasceu. Esse princípio da Lei não deixou de ter algo a nos ensinar.

O segundo motivo por que o texto requer “vida por vida” é que atentar contra a vida é atentar contra o próprio Deus, considerando que cada ser humano (incluindo bebês que ainda não nasceram) é portador, se bem que imperfeito, da imagem divina (Gênesis 9:6). Novamente, há exceções importantes que nos ajudam a entender que a Lei nunca foi vista como um programa de computador que deve ser mecanicamente aplicado, e sim que ela prescreve uma solução justa e sábia para várias situações práticas. A chamada “guerra santa”, que não se aplica hoje, é um exemplo de exceção a esse princípio, pois o povo de Israel recebeu ordem de executar sumariamente os habitantes de certas cidades (não todas) na terra de Canaã, e o motivo expressamente dado foi que a medida de sua iniquidade era exorbitante, e que a terra deveria ser purificada para ser o lugar onde Deus habitaria com Seu povo. Isso, contudo, não anula o princípio.

Assim, fica claro que o bebê não nascido era considerado humano, portador da imagem de Deus, e que mesmo uma agressão não intencional, como Êxodo 21 descreve no caso do efeito colateral de uma briga, deveria ser punida proporcionalmente, por se tratar de um atentado ao próprio Deus em última análise. Fica claro, também, que, apesar de vivermos num momento histórico distinto daquele vivido pelo povo de Israel na antiguidade, o princípio geral dessa lei ainda tem muito a nos ensinar.

Finalmente, na sua sabedoria muitas vezes vista como “ultrapassada” e até mesmo “bárbara”, a Lei da “vida por vida” e da punição proporcional à violência causada por um criminoso oferece uma lição interessante no caso que se discute em nosso país. Mesmo com o pressuposto um tanto forçado de que o bebê deve ser visto meramente como um “invasor criminoso” da propriedade privada (corpo) da mãe, pelo princípio “ultrapassado” da Lei bíblica, a mãe em tese só teria o direito de escortá-lo para fora do território invadido. Porém, a mãe não teve sua vida atacada pelo bebê e, portanto, não tem o direito de o matar, ou deixar morrer, sem que incorra em grave injustiça por falta de proporcionalidade. Os progressistas que se dizem “modernos” e mais “civilizados” e rejeitam o princípio da punição proporcional (incluindo a pena de morte) provavelmente não se dão conta de que, mesmo no seu universo absurdo onde o bebê é um criminoso merecedor de punição, a vida seria mais protegida pela Lei bíblica que pela lei “civilizada” e “moderna”.

 

Crime de aborto: o que o Supremo decidiu e o que quer decidir

Nessa terça (29), a imprensa divulgou que o Supremo Tribunal Federal teria decidido não ser crime a prática de aborto até o primeiro trimestre de gravidez.

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Ministro Roberto Barroso do STF. Foto: Nelson Jr./SCO/STF

As notícias não expressam exatamente o que foi de fato decidido pelo STF no julgamento do habeas corpus (HC) 124.306/RJ. A questão posta à análise da Suprema Corte era apenas o relaxamento da prisão cautelar dos acusados, por não estarem configurados os requisitos previstos em lei para essa espécie de restrição de liberdade. Portanto, ao conceder a ordem de habeas corpus, o STF apenas decidiu que os acusados devem permanecer em liberdade até o julgamento definitivo da ação penal. Nem sempre há fogo onde há fumaça.

O voto de Barroso

Todavia, o alarde gerado pelas notícias tem sua razão de ser. O ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto, não apenas tratou dos requisitos da prisão cautelar (que eram o real objeto do processo), mas também argumentou que o crime de aborto não se configura se praticado no primeiro trimestre de gestação. Para o ministro, essa hipótese de criminalização violaria os direitos fundamentais da mulher (direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade física e psíquica e à igualdade), seria desproporcional e já teria sido abolida em praticamente todos os países desenvolvidos e democráticos do mundo.

É verdade que, no direito brasileiro, a fundamentação das decisões tem pouca importância. O que vale, mesmo, é a chamada “parte dispositiva”, que contém apenas a conclusão do argumento e a respectiva determinação judicial para a solução do conflito. Tanto é assim que, num órgão colegiado (por exemplo, uma turma ou câmara de tribunal), considera-se unânime a decisão na qual todos os juízes tenham concluído no mesmo sentido, ainda que cada um deles tenha adotado razões de decidir diferentes. Mesmo com o esforço para se introduzir no Brasil um sistema de precedentes vinculantes (no qual juízes e tribunais deverão respeitar a autoridade das decisões proferidas por outros órgãos judiciais de hierarquia superior), permanece uma distinção entre a parte obrigatória do precedente (ratio decidendi ou “razão de decidir”) e a parcela não obrigatória (chamada obiter dictum). Exemplos clássicos de obiter dictum são argumentos não suscitados pelas partes do processo ou sobre os quais elas não tenham tido a oportunidade de se manifestar.

Por essa ótica, pode-se dizer que os argumentos do ministro Barroso sobre a não configuração do crime de aborto no primeiro trimestre de gestação são irrelevantes no que se refere à sua autoridade para vincular decisões futuras, já que, pelo que se depreende do voto do ministro, tais razões não foram objeto de discussão pelas partes do processo.

O recado está dado

Entretanto, parece-nos que o foco argumentativo escolhido por Barroso mira num auditório mais amplo. A fundamentação adotada, menos econômica e mais polêmica, em nada altera a conclusão do julgado e a solução do conflito para as partes (pois todos os demais ministros também entenderam pela concessão da liberdade provisória), mas tem o importante efeito de sinalizar para os movimentos abortistas que há no Supremo uma porta aberta para a descriminalização do aborto pela via judicial.

Como o Poder Judiciário é inerte (só decide quando provocado), essa estratégia funciona como uma espécie de convocação para que o debate seja silenciado na praça pública e nas casas legislativas e submetido diretamente ao STF, onde a discussão é sempre mais curta (há a pressão por uma solução definitiva para o conflito) e menos ampla (somente dele participam as partes do processo, os juízes e os setores da sociedade civil organizada que sejam admitidos como “amigos da corte”).

Não é de estranhar, pois, que a “provocação à provocação” feita ontem pelo Supremo seja rapidamente ouvida e que em breve o judiciário tenha de se pronunciar sobre a (des)criminalização do aborto no primeiro trimestre de gravidez. A fumaça, nesse caso, é um convite ao fogo.

12 proposições sobre um entendimento cristão de economia

por Albert Mohler

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Infelizmente, muitos cristãos americanos sabem pouco sobre economia. Além disso, muitos cristãos assumem que a Bíblia não tem absolutamente nada a dizer sobre isso. Mas uma cosmovisão bíblica, na verdade, tem muito a nos ensinar sobre assuntos econômicos. O significado do trabalho, o valor da mão-de-obra e outras questões econômicas são todos parte da cosmovisão bíblica. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a cosmovisão cristã não exige ou promove um sistema econômico específico.

Por causa disso, os cristãos devem permitir que os princípios econômicos encontrados na Escritura moldem nosso pensamento, embora reconhecendo, ao mesmo tempo, que podemos agir à luz desses princípios em qualquer cenário econômico, cultural ou geracional.

  1. Um entendimento econômico cristão tem a glória de Deus como seu maior objetivo.

Para os cristãos, toda teoria econômica começa com um objetivo de glorificar a Deus (1 Coríntios 10.31). Temos uma autoridade econômica transcendente.

  1. Um entendimento econômico cristão respeita a dignidade humana.

Não importa o sistema de crenças, aqueles que trabalham manifestam a glória de Deus, quer saibam ou não. As pessoas podem acreditar que estão trabalhando por seus próprios motivos, mas elas estão, na verdade, trabalhando a partir de um impulso pelo que foi colocado em seus corações pelo Criador para a Sua glória.

  1. Um entendimento econômico cristão respeita a propriedade privada e a posse.

Alguns sistemas econômicos tratam a ideia de propriedade privada como um problema. Mas a Escritura nunca considera a propriedade privada como um problema a ser resolvido (ver, por exemplo, os Dez Mandamentos). A visão da Escritura de propriedade privada implica que este é o galardão pelo trabalho e domínio do indivíduo.  O Oitavo e Nono Mandamentos nos ensinam que não temos o direito de violar as recompensas financeiras do diligente.

  1. Um entendimento econômico cristão leva plenamente em conta o poder do pecado.

Levar o ensino bíblico sobre os efeitos penetrantes do pecado plenamente em conta significa que presumimos que coisas ruins acontecem em todos os sistemas econômicos. Um entendimento econômico cristão tenta atenuar os efeitos do pecado.

  1. Um entendimento econômico cristão defende e recompensa a retidão.

Todo sistema econômico e de governo vem com incentivos embutidos. Um exemplo disso é o código tributário americano, que estimula procedimentos econômicos desejados. Se ele funciona ou não é uma questão de interminável recalibragem política. Contudo, na cosmovisão cristã, essa recalibragem deve continuar defendendo e recompensando a retidão.

  1. Um entendimento econômico cristão recompensa a iniciativa, o empreendimento e o investimento.

Iniciativa, empreendimento e investimento são três palavras cruciais para o vocabulário econômico e teológico do cristão. A iniciativa vai além da ação. É o tipo de ação que faz a diferença. O empreendimento é o trabalho humano feito corporativamente. O investimento é parte do respeito pela propriedade privada encontrado na Escritura.

O investimento, pelo que se constata, é tão antigo quanto o Jardim do Éden. Aquilo que agrega valor é respeitável, e o impulso para agregar esse valor também. Assim, uma teoria econômica cristã culpa qualquer um que não deseja trabalhar, não respeita a propriedade privada e não recompensa o investimento.

  1. Um entendimento econômico cristão busca recompensar e incentivar a moderação.

Em um mundo caído, dinheiro e investimento podem rapidamente ser distorcidos para fins idólatras. Por esse motivo, a moderação é um item muito importante na cosmovisão cristã. Em um mundo caído, a fartura de um dia pode se transformar em escassez no próximo. A moderação pode ser aquilo que vai possibilitar a sobrevivência em tempos de pobreza.

  1. Um entendimento econômico cristão defende a família como a unidade econômica mais básica.

Quando pensamos sobre a teoria econômica embutida no início da Bíblia, o mandato de domínio é central, mas assim é a instituição divina do casamento. O padrão de deixar e dividir descrito em Gênesis 2 é fundamental para o nosso entendimento econômico.

Adão e Eva foram a primeira unidade econômica. Disto, conclui-se que a família (biblicamente definida) é a mais básica e essencial unidade da economia.

  1. Um entendimento econômico cristão deve respeitar a comunidade.

A maioria dos pensadores seculares e economistas começam com a comunidade e, então, passam para a família. No entanto, pensar a partir das unidades econômicas maiores para as menores não somente não funciona na teoria, mas também não funciona na prática. Começar com a unidade da família e então evoluir para a comunidade é uma opção muito mais inteligente. A doutrina da subsidiariedade – que surgiu a partir da teoria da lei natural – ensina que o significado, verdade e autoridade residem na menor unidade significativa possível.

Se a unidade da família é deficiente, governo algum consegue fazer frente às necessidades de seus cidadãos. Quando a família é forte, o governo pode ser pequeno. Quando a família é fraca, contudo, o governo precisa compensar o prejuízo. Ao focar na família, respeitamos e aperfeiçoamos a comunidade.

  1. Um entendimento econômico cristão recompensa a generosidade e a mordomia apropriada.

Os cristãos que estão comprometidos com a economia do Reino e com o bem da geração seguinte devem viver com uma perspectiva financeira orientada pelo futuro. Cada um de nós tem a responsabilidade, quer tenhamos muito ou pouco, de entender que nossa generosidade perdura muito além de nossa expectativa de vida.

Uma generosidade viva, a qual é tão evidente na Escritura, é essencial para uma cosmovisão econômica cristã.

  1. Um entendimento econômico cristão respeita a prioridade da igreja e sua missão.

Os cristãos devem abraçar prioridades econômicas que o restante do mundo simplesmente não vai entender. Eles devem investir em igrejas, seminários e missões internacionais. Esses são compromissos financeiros cristãos distintivos. Nosso compromisso financeiro último não é para conosco mesmos ou nossos investimentos particulares, mas para o Reino de Cristo. Assim, os cristãos deviam sempre estar prontos a experimentar reviravoltas em suas prioridades e esquemas econômicos, pois as questões urgentes do reino podem intervir a qualquer momento.

  1. Um entendimento econômico cristão foca no juízo e promessa escatológicos.

A vida e suas riquezas não podem proporcionar a alegria última. A cosmovisão cristã nos lembra que devemos viver com a ideia de que prestaremos contas ao Senhor pela administração de nossos recursos. Ao mesmo tempo, os cristãos devem olhar para a promessa escatológica dos Novos Céus e Nova Terra como nossa esperança econômica derradeira. Devemos juntar tesouros no céu, não na terra.

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Fonte: Site do Albert Mohler.

Tradução: Leonardo Bruno Galdino.

Pastores-políticos: pode isso, Perkins?

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Nos últimos dias, surgiram nas redes sociais várias discussões entre cristãos sobre se seria lícito a um pastor cumular um ofício político, como o de vereador. Esses debates não focavam o aspecto da laicidade do Estado — como por vezes se discute, sobretudo entre os progressistas, se deveria haver algum tipo de impedimento ao exercício de cargo político por pessoas professadamente religiosas. Em vez disso, a conversa girava em torno da ética vocacional cristã: se há várias situações em que se admitem ministros evangélicos bivocacionados (por exemplo, quando exercem o magistério), por que a vocação política seria uma exceção?

Acredito que podemos encontrar muita sabedoria para lidar com este assunto no livro A Treatise of the Vocations (“Um tratado das vocações”), do puritano William Perkins (1558–1602), que apresenta de forma sistematizada e pretensamente exaustiva uma “teologia prática” das vocações.

A obra se estrutura do seguinte modo: após definir “vocação” ou “chamado” (“é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem por Deus, para o bem comum”) e distinguir entre vocação geral e particular, Perkins discorre sobre como fazer uma boa escolha, uma boa entrada, um bom progresso e umbom término do chamado.

No capítulo sobre a “boa entrada no chamado”, Perkins responde se é lícito a alguém entrar em duas vocações ao mesmo tempo. Ele defende que essa dupla vocação é aceitável em alguns casos, mas não em outros.

É lícito exercer duas vocações em três circunstâncias:

1. Quando o próprio Deus determina a combinação de dois chamados. O exemplo mais óbvio é o de Melquisedeque, que foi designado rei e sacerdote.

2. Quando o duplo chamado não contraria as Escrituras e, ao mesmo tempo, serve ao bem comum em determinadas circunstâncias peculiares. Perkins usa os exemplos de Eli (sacerdote e juiz), Samuel (profeta e juiz) e Moisés (profeta e governante civil) e explica que, “naqueles períodos, ambos os ofícios estavam tão corrompidos que não se podiam achar homens comuns suficientes para exercer cada chamado separadamente”.

3. Quando dois chamados podem ser cumulados sem se atrapalharem mutuamente ou impedirem o bem comum. Aqui, Perkins está falando de vocações que são tipicamente cumuladas, como as de pai e de profissional, mas também de situações em que necessidades particulares exigem a dupla vocação, como quando o apóstolo Paulo fazia tendas em Corinto. Perkins diz que, em casos de similar necessidade, um ministro evangélico pode exercer outro chamado, desde que isso não seja um empecilho à sua vocação principal nem se torne numa afronta aos homens.

Em sentido contrário, a dupla vocação se torna ilícita também em três circunstâncias:

1. Quando Deus dissocia dois chamados por sua Palavra e mandamento.

2. Quando a prática de um chamado atrapalha a do outro.

3. Quando a combinação de dois chamados prejudica o bem comum.

Perkins usa então alguns exemplos em que a dupla vocação é inaceitável: o Senhor Jesus, sendo Mestre da igreja, se recusou a ser juiz num conflito entre dois irmãos pela herança; os apóstolos, em virtude dos deveres do seu chamado, se recusaram a exercer o ofício de diáconos. E conclui:

A partir disso inferimos que nas cidades, corporações e sociedades, deve-se tomar cuidado (tanto quanto possível) para que os diversos ofícios e encargos, sendo em si mesmo pesados e de espécies distintas, não sejam postos sobre os ombros de um só homem. Pois a execução de todos eles causa distrações — e as distrações incapacitam até o mais apto homem de desincumbir-se de um ofício que seja.

O argumento geral de Perkins (com o qual concordamos) nos permite afirmar duas coisas. Por um lado, não é possível afirmar que a cumulação dos ofícios de ministro eclesiástico e magistrado civil seja sempre ilícita, já que eles não foram expressamente dissociados nas Escrituras. Todavia, por outro, é altamente recomendável que essas duas vocações permaneçam separadas; pois cada uma envolve grandes atribuições (são “em si mesmas pesadas”) e há pouca ou nenhuma sobreposição entre si (são “de espécies distintas).

Portanto, a partir da sabedoria bíblica exposta por William Perkins, a dupla vocação de ministro e magistrado somente seria possível em circunstâncias altamente peculiares, nas quais não houvesse número suficiente de homens aptos para que cada um dos ofícios fosse exercido por indivíduos diferentes. Fora dessa hipótese incomum, é mais provável que a cumulação desses chamados seja um obstáculo ao bem comum: sofrerá a igreja, sofrerá a sociedade.

Os Salmos e a Primeira Guerra Mundial

Czech NT Psalms 2Todo mundo sabe como tudo começou. Era o final de junho em 1914. As tensões vinham crescendo há décadas entre as potências europeias rivais. O herdeiro do trono Austro-húngaro, o arquiduque Franz Ferdinand, estava visitando Sarajevo, a capital da Bósnia-Herzegovina, quando ele e sua esposa foram assassinados por um nacionalista sérvio chamado Gavrilo Princip. A então anexação por Viena daquela província seis anos antes tinha quase levado à guerra, mas agora as vias de fato estavam a apenas um mês de acontecer. Quando a poeira baixou e a guerra terminou, quatro anos depois, cerca de dezesseis milhões de pessoas tinham perdido suas vidas, e o mundo nunca mais foi o mesmo. Antigos impérios caíram, reis e imperadores tombaram de seus tronos e foram exilados. Populações inteiras foram cruelmente arrancadas de seus lares, simplesmente por viverem no lado errado de fronteiras arbitrariamente estabelecidas durante e depois das hostilidades terem terminado.

Há quase quatro décadas atrás, eu visitei Praga, a capital do que ainda era a Tchecoslováquia comunista e, antes da primeira guerra mundial, parte do Império Austro-Húngaro. Durante minha estadia lá, comprei em uma livraria de antiguidades o Novo Testamento e os Salmos em checo publicado em 1845 para “Cristãos Evangélicos de Confissões de Augsburgo e Helvética”, ou seja, para luteranos e cristãos reformados. A impressão estava em fonte German black letter e algumas palavras já haviam caído em desuso.

Há aproximadamente sete anos, notei algo interessante sobre o Livro dos Salmos neste volume. O proprietário anterior do livro, cujo sobrenome era Lány, leu os Salmos ao ritmo de aproximadamente um salmo por dia (exceto, claro, pelo Salmo 119), lembrando de marcar a data no cabeçalho de cada um. Ele começou com o Salmo 1 em primeiro de agosto de 1914, e continuou até ler o Salmo 150 em 19 de janeiro de 1915.

Estou convencido de que o momento de suas orações pelos Salmos não foi acidental. A guerra tinha estourado quatro dias antes, e o mundo inteiro seria rapidamente engolido no desenrolar do conflito. Se Lány tinha filhos que poderiam estar sujeitos à convocação militar ou se ele temia pela segurança de seu lar e de sua comunidade não se pode ter certeza.

Contudo, ao tempo em que a batalha de Tannenberg estava se estendendo para o Norte, Lány orava pelo mais que apropriado Salmo 27: “Ainda que um exército se acampe contra mim, não se atemorizará o meu coração; e, se estourar contra mim a guerra, ainda assim terei confiança”. Não muito depois, no dia em que a Rússia derrotou a Áustria na batalha de Rawa, Lány orava no Salmo 42: “Digo a Deus, minha rocha: por que te olvidaste de mim? Por que hei de andar eu lamentando sob a opressão dos meus inimigos? Esmigalham-se-me os ossos, quando os meus adversários me insultam, dizendo e dizendo: O teu Deus, onde está?”

Os Salmos podem ter fornecido conforto a Lány, ou eles podem ter expressado seus temores e sua ira nas semanas iniciais da guerra. Claro, ao orar usando os Salmos ele não fazia nada novo; ele estava apenas seguindo os exemplos da igreja primitiva, da Regra de São Bento, e até da sua própria comunidade eclesiástica, a qual suspeito que tenha sido Luterana.

Um século depois, ainda não conseguimos expressar facilmente as emoções que nossos antepassados experimentaram naqueles dias sombrios do início da guerra. Os últimos veteranos se foram, e aqueles que possuem uma vaga memória do conflito têm mais de cem anos de idade.

Entretanto, a história não para. Enquanto escrevo, as tensões aumentam entre a Rússia e grande parte do mundo (ocidental) a respeito do endosso russo ao separatismo na Ucrânia. E o Estado Islâmico pode, a longo prazo, extinguir um país cuja existência se deve à vitória Anglo-francesa em 1918. Apesar de esses conflitos parecerem improváveis a nos conduzir a outra guerra mundial, eles ilustram que, passado um século, a situação da humanidade permanece a mesma. Não passaram-se sequer dois ou mais milênios. Em uma das minhas bíblias o Salmo 82 tem o seguinte título: “Um clamor por justiça”, e se encerra com as seguintes palavras: “Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois a ti compete a herança de todas as nações.” De fato, todos os nossos falíveis esforços humanos por justiça são dependentes do reconhecimento desta simples verdade bíblica.

Tradução: José Reginaldo Jr.

Fonte: One Hundred Years Later: The Psalms and the First World War

Graça e evangelho até as entranhas

por Douglas Wilson

Sem domínio próprio, nenhuma outra forma de governo justo é possível. A única maneira de equilibrar ordem e liberdade em qualquer sociedade mais liberal é quando seus indivíduos sabem como equilibrar ordem e liberdade em suas próprias vidas. O referencial de liberdade organizada é a liberdade do vício no nível individual.

Aqueles que exercem autoridade despótica sabem disso tanto quanto os amantes da liberdade. É por isso que oferecem suborno. Licenciosidade sexual, fumar maconha, pornografia generalizada e bebedeira criam sensações de liberdade, mas tudo isso são coisas que podem ser permitidas no cubículo de uma cela de prisão. Oferecidas sensações incompletas de liberdade e impostas grandes restrições sobre a liberdade externa, você tem uma sociedade que é, ao mesmo tempo, licenciosa e legalista. É onde nos encontramos hoje.

bees-276190_1920É conveniente, para uma república livre, eleger um presidente para representá-los. Mas quando uma república começa a se transformar em um enxame coletivista, como a nossa se transformou, o nome mais apropriado para o líder desse governo seria algo como “apicultor”. As abelhas são coagidas externamente, mas antinomianas por dentro.

É fácil considerar o legalismo como uma ponta do espectro e a licenciosidade como a outra, com a liberdade ocupando algum tipo de posição intermediária, como se fosse um caso de calcular a média entre legalismo e licenciosidade. Mas isso está longe de ser verdade. A liberdade não é uma questão do ideal aristotélico [“a virtude está no meio”]. Legalismo e licenciosidade são siameses ligados numa ponta, com a liberdade na outra. A liberdade é a única alternativa a ambos.

Jesus disse que nossa justiça precisava exceder a dos fariseus (Mt 5.20). Elas eram um amontoado de regras, restrições e “não toqueis” (legalismo), mas também um amontoado voraz de concupiscências (Mt 23.25). Internamente, era tudo permissividade. Eles não eram justos, e nem de longe justos o suficiente.

Esta liberdade sobre a qual estou falando, a liberdade do homem livre, só é possível como a liberdade de um homem cristão. E isso significa graça e evangelho até as entranhas.

Fonte: Blog & Mablog

Tradução: Leonardo Bruno Galdino

A base do governo livre

por Douglas Wilson

chains-19176_1920A base de toda forma de governo livre — quer na família, nos assuntos civis ou no governo da igreja — é a autonomia. Se as pessoas não têm autocontrole, pode ter certeza de que elas serão controladas por forças externas.

É fácil lamentar o despotismo quando ele oprime, quando os impostos são dívidas e quando as regulamentações são onerosas. Quando Faraó exige tijolos mas não fornece as palhas, todos os escravos lamentam a escravidão. Sempre que as contas vencem, o mundo inteiro é libertário.

Assim, precisamos comparar dois ensinos da Escritura. O primeiro é que a liberdade é obra do Espírito de Deus. “Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3.17). E a segunda passagem é esta: “Mas o fruto do Espírito é […] domínio próprio” (Gl 5.22-23). Um dos principais instrumentos que o Espírito Santo usa para promover a verdadeira liberdade é libertar da imoralidade os que dela são escravos. Ele corta suas correntes. Mas o autor do hino sabe o que necessariamente resulta disso. Levantei-me, segui adiante e Te segui.

Uma geração de escravos do pecado não pode ser livre. Eles não sabem o que é liberdade. Ela os aterroriza. Se lhes fosse concedida, não teriam ideia de como preservá-la. “Como cidade derribada, que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio próprio” (Pv 25.28). É por isso que a embriaguez é uma questão política. É por isso que a pornografia é uma questão tão séria. Uma geração de fumantes de maconha não pode ser livre.

Se algum déspota propusesse acorrentar você na parede de um calabouço, mas prometesse implantar um eletrodo na central de prazer do seu cérebro de tal forma que você tivesse uma euforia incessante até o dia de sua morte, o que você acharia disso? Mas se você não aceitaria esse grandioso suborno, por que está perdendo tempo com suborninhos? Se você não aceitaria um prazer desmedido em troca de sua liberdade, por que está se conformando com prazeres insignificantes em troca dela?

Só há um modo de homens e mulheres libertarem-se: se forem endireitados.

Tradução: Leonardo Bruno Galdino

Original: The Foundation of Free Government