Mais horrível que matar alguém na própria casa

Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar segundo o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará como os juízes lhe determinarem. Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe (Êxodo 21:22-25).

baby-feet-blueEnquanto os juízes usurpam o poder legislativo na nossa nação no ímpeto progressista de legalizar o aborto voluntário a todo custo, é bom refletir um pouco sobre o que as Sagradas Escrituras têm a dizer nessa área.

Ao comentar Êxodo 21, o reformador João Calvino escreve que “o feto, embora envolto no útero de sua mãe, já é um ser humano”. Ele continua, dizendo que “parece ser mais horrível matar um homem na sua própria casa que matá-lo no campo, pois a casa é nosso lugar de refúgio mais seguro”, e que “certamente deve ser visto como algo mais atroz destruir um bebê no útero antes que ele venha à luz” que em circunstâncias normais.

A Lei requer uma punição proporcional ao dano causado – caso a vida seja tirada, a pena de morte se aplica: “darás vida por vida”. É preciso não perder de vista o motivo. Primeiramente, não se trata de mera vingança, e sim de justiça. O texto é claro: se a mulher for machucada e o bebê nascer prematuramente, uma multa deve ser paga, obviamente, não só como punição pela violência colateral causada pela briga entre os homens, mas também como uma forma de pagar pelo tratamento das vítimas. Porém, “se houver dano grave”, então a punição vai além dessa compensação financeira e envolve também uma punição física proporcional à violência causada. Por isso mesmo o texto não prescreve simplesmente uma pena uniforme a todo tipo de violência colateral.

Em segundo lugar, na legislação do Antigo Testamento, a pena de morte não é aleatória, ao contrário do que outras culturas à volta de Israel praticavam, prescrevendo a penalidade máxima, com requintes de crueldade, para qualquer crime mais ou menos ofensivo. Nas leis do Antigo Testamento, há uma correlação entre certos pecados (incluindo crimes graves) e a pena de morte, mas somente naqueles casos em que o próprio Deus é de alguma forma atacado. Há pelo menos dois motivos por que o texto aqui requer “vida por vida”, independente de só a mãe ou o bebê ou ambos serem mortos.

O primeiro motivo é restrito ao povo de Deus antes da vinda do Messias. Dependendo das circunstâncias, haveria possivelmente a esperança de que aquela criança no útero seria o Messias prometido aos ancestrais, a promessa que o povo tanto aguardava. Matar a mãe ou a criança, ainda que por acidente, seria uma forma de atentar contra o próprio Deus e contra o Seu plano prometido nas Escrituras. Cometer semelhante crime nos nossos dias também atentaria contra o plano de Deus revelado nas Escrituras, mas obviamente sem envolver esse aspecto messiânico. Deus revelou nas Escrituras que a vida deve ser promovida, e que principalmente os mais frágeis, como a mulher e o bebê, devem ser protegidos. Portanto, o nosso momento histórico, após a vinda do Cristo, não é desculpa para ignorar com facilidade o crime de matar, mesmo que por efeito colateral, uma criança que ainda não nasceu. Esse princípio da Lei não deixou de ter algo a nos ensinar.

O segundo motivo por que o texto requer “vida por vida” é que atentar contra a vida é atentar contra o próprio Deus, considerando que cada ser humano (incluindo bebês que ainda não nasceram) é portador, se bem que imperfeito, da imagem divina (Gênesis 9:6). Novamente, há exceções importantes que nos ajudam a entender que a Lei nunca foi vista como um programa de computador que deve ser mecanicamente aplicado, e sim que ela prescreve uma solução justa e sábia para várias situações práticas. A chamada “guerra santa”, que não se aplica hoje, é um exemplo de exceção a esse princípio, pois o povo de Israel recebeu ordem de executar sumariamente os habitantes de certas cidades (não todas) na terra de Canaã, e o motivo expressamente dado foi que a medida de sua iniquidade era exorbitante, e que a terra deveria ser purificada para ser o lugar onde Deus habitaria com Seu povo. Isso, contudo, não anula o princípio.

Assim, fica claro que o bebê não nascido era considerado humano, portador da imagem de Deus, e que mesmo uma agressão não intencional, como Êxodo 21 descreve no caso do efeito colateral de uma briga, deveria ser punida proporcionalmente, por se tratar de um atentado ao próprio Deus em última análise. Fica claro, também, que, apesar de vivermos num momento histórico distinto daquele vivido pelo povo de Israel na antiguidade, o princípio geral dessa lei ainda tem muito a nos ensinar.

Finalmente, na sua sabedoria muitas vezes vista como “ultrapassada” e até mesmo “bárbara”, a Lei da “vida por vida” e da punição proporcional à violência causada por um criminoso oferece uma lição interessante no caso que se discute em nosso país. Mesmo com o pressuposto um tanto forçado de que o bebê deve ser visto meramente como um “invasor criminoso” da propriedade privada (corpo) da mãe, pelo princípio “ultrapassado” da Lei bíblica, a mãe em tese só teria o direito de escortá-lo para fora do território invadido. Porém, a mãe não teve sua vida atacada pelo bebê e, portanto, não tem o direito de o matar, ou deixar morrer, sem que incorra em grave injustiça por falta de proporcionalidade. Os progressistas que se dizem “modernos” e mais “civilizados” e rejeitam o princípio da punição proporcional (incluindo a pena de morte) provavelmente não se dão conta de que, mesmo no seu universo absurdo onde o bebê é um criminoso merecedor de punição, a vida seria mais protegida pela Lei bíblica que pela lei “civilizada” e “moderna”.

 

Qual o problema com o bloqueio do WhatsApp?

YgaSXWJogZfREHq-800x450-noPadÀs vezes eu me espanto com o moralismo “cristão” que aprova a expansão do poder e da autoridade do governo civil além do dever do governo civil de promover a justiça pública. O caso do WhatsApp bloqueado é mais um exemplo.

Antes de tratar desse caso, porém, deixe-me contar uma história para deixar clara a diferença entre justiça e lei.

Morei e trabalhei no Reino Unido por vários anos. Recentemente, eu me mudei para a África. Um dia, chegou uma carta do governo britânico dizendo que eu deveria me apresentar como jurado no tribunal da cidade onde eu tinha morado. Meu nome ainda estava no registro eleitoral e eu acabei sendo sorteado para servir à comunidade como jurado no tribunal.

A atuação como jurado é uma das poucas vezes em que o cidadão não versado nas complexidades do direito e da lei tem a oportunidade mais direta de ajudar a promover a justiça.

Fui dispensado por morar fora, mas caso fosse possível, eu teria participado do julgamento com gosto. Fico pensando que, se fosse necessário, meu veredito no voto do júri poderia até mesmo contrariar o que o senso comum ou a lei determina. Por exemplo, se o “crime” fosse um crime de não-agressão à pessoa ou seus bens, eu ficaria inclinado a não dar ao governo a autoridade para punir o suposto “criminoso”.

Como jurado (e talvez para horror dos promotores e advogados que põem a lei acima da justiça), minha abordagem seria a de promover a justiça pública, por mais que a lei em si às vezes vá contra a justiça pública. Saber isso de antemão provavelmente ajudará a promotoria a me dispensar de um futuro serviço como jurado.

Tudo isso eu digo para fazer um breve comentário sobre o bloqueio do WhatsApp que tem oprimido a população brasileira. Primeiro, o WhatsApp foi bloqueado por conta duma investigação a uma quadrilha de tráfico de drogas. Meu problema com quadrilhas de tráfico de drogas não é que eles compram ou vendem drogas (fora dos parâmetros de compra e venda de drogas duma farmácia), e sim que eles, por exercerem atividade ilegal, acabam tendo que criar um sistema paralelo para cumprir os “contratos”, principalmente com o uso ilegítimo da violência. Meu problema é que esses grupos volta e meia estão envolvidos em crimes reais como o homicídio, o sequestro, o roubo e assim por diante. Por isso mesmo, seria bom que o governo se preocupasse com esses crimes reais e não com o “crime” de comprar e vender.

Pressupondo que o motivo real da investigação tem a ver com crimes em que há vítimas, podemos até dar uma colher de chá ao governo e trabalhar com o argumento de que ele está tentando cumprir o dever de promover a justiça pública punindo crimes reais. Então deixemos de lado o motivo da investigação que engatilhou todo esse processo.

Segundo, o governo então forçou a companhia encarregada do WhatsApp que quebrasse a privacidade e o sigilo das mensagens do indivíduo sob investigação. A companhia recusou: afinal, parte do seu “contrato” com o consumidor é que as mensagens privadas são… privadas. O governo, por sua vez, considera-se dono ou da internet, ou das mensagens privadas em geral, ou (pior ainda) da atividade econômica na nação, para julgar que tem autoridade para mandar e desmandar dessa forma.

Se eu não apontar isso, alguém vai: o governo, se quer fazer a justiça pública, deve garantir que os contratos sejam cumpridos. Ele não deve obrigar empresas a quebrarem os contratos. A situação piora. Por causa desse caso isolado, de um indivíduo sob investigação, toda a população é punida, como se ela fosse também perpetradora de crimes hediondos. Até agora, tirando o caso do “crime” de comprar e vender, que deixamos de lado, já temos duas violações da justiça pública feitas pelo governo. Uma é a obrigação de uma empresa descumprir seus contratos, e a outra é a de punir injustamente toda a população.

Repare: tudo isso pode estar perfeitamente dentro do que a lei permite (ainda assim há um debate sobre isso). Porém, esse é um dos casos em que a lei estaria contrária à justiça. E o que estamos discutindo aqui é a justiça pública, que o governo civil é chamado a ministrar, lembrando que parte desse ministério do governo é o de punir o agressor com a coerção e de facilitar a vida dos que fazem o bem (Rm 13) – e não o contrário!

Possíveis problemas

E agora, podemos pensar em possíveis problemas. Primeiro, isso abre um precedente para o governo bloquear as comunicações no país por algum outro motivo. Por exemplo, se você anda a protestar legitimamente contra o governo atual (seja ele o governo corrupto de Dilma ou o governo corrupto de Temer) e precisa usar as redes sociais para articular uma passeata, você pode perder esse instrumento, tornando o protesto menos efetivo, caso o governo conclua que há motivos suficientes para bloquear o WhatsApp. Se aconteceu por causa de um crime sob investigação, por que não poderia ocorrer por causa de milhares de crimes em potencial contra a ordem pública? Afinal, mesmo no protesto mais dócil, um ou outro carro pode acabar sendo queimado, e uma ou outra pessoa sendo ferida.

Segundo, qual outra empresa vai querer oferecer um serviço gratuito à população, sabendo que ela ficará à mercê do governo civil? No longo prazo, perdemos todos com isso.

Eis aqui uma alternativa mais compatível com o dever do governo de punir o agressor e de facilitar a vida dos que fazem o bem: deixar claro (e cumprir) que toda agressão será punida proporcionalmente, após processo justo, e deixar o resto para a sociedade tratar.

A quadrilha de drogas? Espero que todos os que de fato cometeram um crime real sejam presos e punidos. Espero que as vítimas de seus crimes (se ainda vivas) sejam compensadas de alguma forma. Mas espero também que o processo de investigação em si não seja injusto e não crie mais vítimas de crimes reais, crimes de agressão à pessoa ou propriedade promovidos pelo governo em nome da justiça.

Lucas Freire é editor do Política Reformada.

Idolatria estatal e tentativas de calar a igreja

Sobre a Declaração do Congresso Vida Nova 2016 (Parte 2)

Vimos que a Declaração do congresso Vida Nova sobre a atual conjuntura sociopolítica da nação tem quatro partes distintas. Duas delas foram comentadas na primeira parte da nossa análise. Após isso, a Declaração inclui uma seção de protesto, falando de certos fatores que seus signatários repudiam. E então, o documento faz uma convocação, chamando a igreja a agir.

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Na seção de protesto, a Declaração passa a listar seis pontos marcados pelo verbo “repudiar”. Os seis fatores repudiados são: a idolatria ao Estado, qualquer tentativa de silenciar a igreja na esfera pública, o silêncio dos que deveriam fazer uma crítica profética à atual situação, a corrupção, a relativização da Constituição Federal e a desarmonização do executivo, legislativo e judiciário.

Idolatria ao Estado

O primeiro ponto diz respeito à idolatria ao Estado, ligando tal ato de idolatria à “iniquidade, conivência, omissão e dissimulação da impiedade”. O cristão reformado está acostumado a confessar a soberania absoluta de Deus sobre tudo e todos. Uma implicação dessa confissão é que existem limites naturais e normativos para todo poder e autoridade nesta terra. Os limites naturais são aqueles inerentes ao caráter humano de qualquer um que ocupe um ofício ou cargo de liderança. Tal pessoa é falha, num mundo afetado pelo pecado, mas também limitada pela condição de criatura. Mesmo antes do pecado afetar o mundo, vemos que o ser humano era limitado de várias formas, por ser criatura, e não Criador. Porém, com a presença do pecado na nossa forma de pensar e agir, existe uma limitação (e, muitas vezes, uma força contraprodutiva) em qualquer atividade humana envolvendo um ofício ou cargo de autoridade e liderança. Deus, pelo contrário, por ser Criador e por ser santo e perfeito, não possui tais limitações: Ele é plenamente capaz de ter autoridade absoluta sobre tudo e todos, e de fato a tem.

Qualquer pretensão contrária é rejeitar a própria estrutura da criação. É como se eu decidisse ignorar que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo e, correndo contra uma parede, tivesse a pretensão de atravessá-la sem me machucar e sem quebrar a parede. Da mesma forma, a idolatria ao Estado parte da ilusão, por exemplo, de que os burocratas do Estado são divinos, e têm a capacidade de superar sua limitação de criatura falha, afetada pelo pecado, e de fazer cálculos políticos e econômicos complexos que permitiram alegadamente ao governo de fato ser o provedor e mantenedor de todas as coisas. Não é preciso mencionar os horrores que os governos com tal pretensão, como a Coreia do Norte, fazem seus cidadãos sofrerem para que o ponto fique claro. Existe, portanto, um limite natural a toda e qualquer autoridade nesta terra e, comparada à autoriade de Deus, ela é naturalmente limitada.

Além disso, é óbvio (mas não custa lembrar) que existem também limites normativos à autoridade do governo civil. Repare no civil: não é um termo de redundância, e sim uma palavra que se acrescenta aqui para deixar claro o seguinte: o Estado está longe de ser o único governo que Deus colocou na sociedade para o nosso bem, e para combater o mal. Deus também colocou o próprio autogoverno do indivíduo sobre seus impulsos, o governo da família e a autoridade dos pais e assim por diante. Há um governo diferente em cada ofício para cada tipo de esfera da vida. O maestro governa sua orquestra, e o professor, sua sala de aula. O professor não governa a família dos seus alunos, a não ser que seja de fato o pai deles, e o maestro não tem autoridade em outra esfera sobre os musicistas de sua orquestra, a não ser que seja, por exemplo, um oficial superior numa banda militar. Não é preciso ser um gênio para entender que há uma pluralidade de autoridades coexistindo na vida de cada um, mas é necessário ser um gênio do mal para persuadir as pessoas de que a autoridade do Estado tem algo “especial” e certa prerrogativa e superioridade sobre as demais esferas.

E, no entanto, cá estamos, praticamente convencidos de que deve ser assim. Um lado do espectro político quer sequestrar o Estado para impor de cima para baixo uma transformação cultural que vai ajeitar a sociedade brasileira, levando-a de volta aos “bons e velhos tempos”. O outro lado deseja endeusar o Estado porque acha que ainda estamos nos “velhos tempos” e precisamos que os burocratas imponham de cima para baixo uma agenda “progressista”. E isso é só o aspecto cultural. Quando olhamos para todos os aspectos da vida em sociedade, vemos que a idolatria do Estado tem pressuposto que essa instituição social deve abraçar o mundo, por assim dizer, e deve tomar parte em tudo o que acontece e tudo o que se faz. Não é de surpreender, portanto, que o Estado acaba fazendo mal a sua tarefa de promover a justiça pública e que, muitas vezes ele mesmo se torna promovedor de uma infinidade de coisas não-estatais ao mesmo tempo em que viola a norma da justiça pública. E, assim, o governo se transforma num covil de salteadores. “Mas não tem problema! Afinal o Estado, que é nosso pai e mãe, nosso médico, nosso professor e o consumador de nossa fé (sic.) está fazendo grandes avanços na agenda que queremos promover! Podemos ignorar os meios, desde que o fim seja obtido.” Por conta de nossa idolatria ao Estado, passa a existir uma conivência e omissão para com a iniquidade e dissimulação da impiedade.

Tentar calar a igreja

O segundo ponto a ser repudiado é a tentativa de silenciar a igreja, empurrando-a para a esfera privada e tirando-a da esfera pública. Aqui, temos duas ideologias que no tempo contemporâneo se reforçam. Uma afirma que religião é o ópio das massas e que só serve para reforçar a exploração do sistema atual. Essa ideologia coletivista quer uma revolução, mas a religião é parte do sistema que mantém as massas sob controle e que evita que essa revolução aconteça. A outra ideologia vem duma matriz diametralmente oposta, do pseudoliberalismo contemporâneo, que afirma que tudo o que é público deve ser baseado no “mínimo denominador comum” entre todos os indivíduos da sociedade. E por causa disso, e por causa da variedade de opiniões religiosas na soicedade, a esfera pública deve ser “limpada” de qualquer influência religiosa: a religião secularista é a única que deve ter lugar no Estado moderno.

O sujeito que quer silenciar a igreja porque deseja uma revolução e que afirma ser a religião o ópio das massas não se dá conta de que as massas são oprimidas atualmente pela ideologia que ele mesmo promove, e que essa ideologia é a religião (da idolatria ao Estado ou à luta de classes) que tem mantido as massas no escuro. O cristão reformado entende que a situação atual não é boa, e que as massas têm sido oprimidas por um sistema totalitário, e que esse sistema promove uma certa religião que mantém as massas no lugar (junto com pão e circo). O sintoma é esse, mas o diagnóstico é diferente para o cristão reformado, pois ele crê que o evangelho e o governo de Jesus Cristo sobre tudo e todos é a única cura cabal para o problema da opressão e da falsa consciência que essa falsa religião estatólatra promove na nossa sociedade. A única “revolução” capaz de lidar com esse problema de forma efetiva é a “revolução” espiritual do redirecionamento do coração humano para que deixe de ser rebelde ao seu Criador e passe a viver uma vida de piedade, amor e gratião a Ele, obedecendo Sua lei. Por isso, a igreja precisa de sua voz, para proclamar a boa-nova da redenção em Cristo pelo poder do Espírito Santo, e para denunciar todo falso esquema e falsa religião que é de fato um ópio para as massas. A igreja deve, sim, ser livre para proclamar que esse redirecionamento deve ter efeito prático na vida de cada um, e na vida da sociedade que se converte como um todo.

Já, do outro lado, o sujeito que quer silenciar a igreja ao empurrá-la para a esfera privada porque a pública deve ser reduzida ao mínimo denominador comum entre todo tipo de filosofia de vida e preferência – esse sujeito, do ponto de vista cristão e reformado, não se dá conta de que não existe neutralidade religiosa na vida. Existem alguns no seio da igreja que pressupõem exatamente isto: que existe sim a possibilidade de neutralidade religiosa, e que a igreja não deve se “misturar” com as coisas “deste mundo”. É preciso ter paciência com essas pessoas, pois elas desejam manter a integridade das tarefas da igreja, entendendo que ela deve se concentrar na proclamação do evangelho, mas isso não quer dizer que o cristão não deva procurar formar uma opinião bíblica e adotar um curso de ação conforme as Escrituras na sua atuação política. Negar isso é afirmar que deve haver um certo “vácuo” no compartimento da vida cristã que experimenta a política e a vida social no dia-a-dia, e que esse “vácuo” é religiosamente neutro. Esse tipo de pensamento coloca combustível no dínamo dessa religião rival, do humanismo secular, que deseja expulsar a religião (e, portanto, a igreja) da esfera pública. Porém, não há neutralidade. A vida, toda a vida, é religião. O cristão reformado afirma que tal tentativa de silenciar a voz da igreja na esfera pública deve ser alvo de repúdio.

Lucas Freire é editor do Política Reformada.

Sobre a Declaração do Congresso Vida Nova 2016 (Parte 1)

O Congresso de Teologia Vida Nova discutiu em março deste ano o que a teologia evangélica pode fazer pela sociedade e cultura, principalmente no caso do Brasil. A editora Vida Nova é responsável por uma excelente revista, Teologia Brasileira, e pela tradução de diversos livros evangélicos de boa qualidade sobre a bíblia e questões políticas e econômicas.

Como parte do Congresso, foi emitida no dia 17 de março uma Declaração sobre a Atual Conjuntura Sociopolítica da Nação. O leitor atento verá que a Declaração tem quatro partes distintas. Do ponto de vista cristão e reformado há muito o que se elogiar nessa declaração, e as diferenças com a doutrina e prática reformadas devem ser minimizadas na avaliação do documento. Tal avaliação simpática, mas cuidadosa, é o que se pretende aqui.

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Antes da Declaração propriamente dita, temos um preâmbulo que basicamente chama os cristãos (em geral) a confessar certos pecados, a repudiar outros e a participar de forma ativa no presente “momento crítico em nossa história nacional.”

Em seguida, o documento faz três afirmações principais que possuem caráter abrangente e refletem uma linguagem confessional. Em primeiro lugar, a soberania da Santíssima Trindade sobre a criação, a história e principalmente a liderança das nações  é afirmada. É inclusive mencionado que Deus determina “que tudo, invariavelmente, atenda à sua vontade.” Em segundo lugar, afirma-se que é necessário que “cada cristão” tenha parte na vida pública. Isso é retratado como instrumento para espalhar a paz e justiça do reino de Deus “em todas as áreas” da vida social. Finalmente, afirma-se que a igreja fiel em sua missão (pregar a palavra e ministrar corretamente o batismo e a ceia) capacita, assim, os cristãos a servirem os mais vulneráveis na sociedade.

O cristão reformado pode dizer “sim” a esses pontos, com entusiasmo, notando principalmente a afirmação da soberania absoluta de Deus, e do seu governo sobre todas as coisas. Também do ponto de vista reformado é interessante notar que, contrariamente aos ensinos anabatistas de antigamente e também de várias igrejas hoje, há um chamado para o cristão (homem e mulher) participar da vida social, e não se isolar, rebaixando a vida pública a algo inferior ou “do mundo.” A ideia de um cristianismo que afeta todas as áreas da vida é promovida com entusiasmo pela cosmovisão bíblica e reformada. Além disso, a afirmação de que a igreja fiel equipa seus membros a servirem ao próximo é também refletida na confissão reformada sobre o papel da igreja.

É preciso notar, entretanto, alguns detalhes relevantes. Como um documento amplo e geral, a Declaração deseja falar a evangélicos (principalmente) de diversas tradições, incluindo pentecostais, batistas e outros. Por isso, o documento sabiamente evita definições pormenorizadas em cada um de seus pontos. Porém, ao dizer “sim” a este documento, o cristão reformado traz consigo um entendimento particular de certos aspectos que ele não deve abandonar.

A soberania de Deus

Ao versar sobre o absoluto controle de Deus, em sua providência, sobre tudo o que ocorre, o documento deixa subentendido que também o terrível momento atual pelo qual a nossa nação passa foi decretado por Deus. Essa ideia, apenas implícita na Declaração, deve ser lembrada em qualquer reflexão sobre o momento atual (Confissão Belga 13). A quadrilha de governantes larápios que têm, aos poucos, destruído o nosso país, dividido nossa sociedade e explorado ricos e pobres foi colocada a cargo da nação pelo próprio Deus Justo e Soberano.

Nossa primeira atitude diante desse fato deve ser de humildade e de reverência – e não de protesto ou reclamação – diante do Juiz Supremo, que hoje usa tais víboras – que zombam dele e de tudo o que é bom – para julgar nosso país, mas que no Juízo Final terá toda a razão em condenar qualquer criminoso que jamais se converteu de seus maus caminhos (Confissão Belga 37). Humilhados, e talvez perplexos, que aprendamos, assim, a nos ajoelhar em confissão de nossas faltas, pelas quais o país tem sido julgado, e a igreja, disciplinada, sabendo que a própria oração é um meio que esse Deus Soberano aproveita para executar sua vontade suprema.

Participação na vida pública

Ao mencionar que é preciso cada cristão se envolver na vida pública para expandir a paz e justiça que imperam no reino de Deus a cada área da convivência social, o documento também deixa margem para um entendimento reformado dessa ação na sociedade. Não se trata duma ação do chamado evangelho social ou da teologia da libertação ou duma suposta missão integral, e sim de um testemunho orientado pela transformação e redirecionamento que o evangelho traz. Esse evangelho deve ser proclamado e vivido, e essa vida não pode se limitar ao âmbito da interação eclesiástica, mas deve se engajar com tudo aquilo que é bom, proveitoso, edificante e lícito (Catecismo de Heidelberg, Domingo 12).

Serviço ao próximo

No que tange à capacidade da igreja fiel em preparar o cristão para o serviço ao próximo, é interessante notar a escolha de termos feita pelos autores da Declaração. Primeiro, o batismo e a ceia são mencionados por nome, e não pela categoria geral de sacramentos. Isso torna a Declaração aceitável também àqueles que negam o caráter sacramental a esses ritos. Porém, o cristão reformado entende que tanto a pregação das Escrituras, também mencionada como atividade da igreja fiel, como a administração dos sacramentos são meios de graça que equipam o membro da igreja fiel a amar a Deus e o próximo.

Além disso, o cristão reformado acrescentaria uma terceira marca da igreja fiel, a saber, a disciplina eclesiástica (Confissão Belga 29). Esse ponto fica também implícito na Declaração, pois ela fala da “administração correta” do batismo e da ceia. Sem disciplina, não há como executar corretamente essa tarefa.

Disciplina eclesiástica

Porém, é importante notar que a disciplina eclesiástica tem um papel fundamental em restringir o mal no seio da igreja – a mesma igreja que deve ser sal na terra e luz no mundo. A igreja fiel, ao aplicar a disciplina eclesiástica, cuida para que o nome de Deus não seja blasfemado na sociedade por causa do mau comportamento de seus membros (Catecismo de Heidelberg, Domingo 47). Ela também zela para que a conduta cristã em cada área da vida seja regulada pela lei de Deus (Confissão Belga 32). Finalmente, ela manifesta a autoridade de julgar, à luz das Escrituras, não somente a conduta, mas também a doutrina daqueles que Deus colocou sob seu governo (Catecismo de Heidelberg, Domingo 31). E, falando em governo, a disciplina eclesiástica é um importante meio usado por um dos mais importantes governos que Deus colocou na vida cristã – o governo de Cristo por meio da liderança na igreja local.

Em suma, a Declaração coloca três afirmações iniciais. Ela confessa a soberania de Deus, declara que é correto e necessário ao cristão envolver-se na vida pública e reitera a importância da igreja fiel. Além da humildade e da oração em reconhecimento ao juízo e disciplina de Deus na sua vontade soberana ao enviar esse momento difícil à nação, o cristão é chamado a repensar seu papel na vida social e, ao mesmo tempo, usar os meios de graça da igreja fiel, aceitando também sua relevância na promoção dos ensinos, valores e conduta vitais para uma verdadeira reforma da nossa cultura e sociedade.

Lucas Freire é editor do Política Reformada.

Como orar pelos governantes?

Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões, e ações de graças, por todos os homens; pelos reis, e por todos os que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade (1Tm 2.1-2).

file0001059522887Após uma conferência inteira em que eu falei sobre a visão bíblica da política, enfatizando principalmente a tradição cristã reformada de pensamento político, surgiu uma pergunta. Eu tinha falado pouco a respeito do dever cristão de orar pelos governantes.

Eu havia dito que precisamos limitar o poder do governo, que precisamos nos organizar como cristãos associados para promover diversas causas independentemente do uso do poder coercitivo do governo, e que precisamos nos educar para entender corretamente o lugar da política no reino de Deus. Mas não falei nada sobre a oração.

Tudo o que eu falei pressupunha a oração, que é “a parte mais importante da gratidão que Deus exige de nós” (Catecismo de Heidelberg, Domingo 45), mas há jeitos certos e errados de se orar. Há um grande problema com certas orações que são feitas pelo governo e pelos governantes. É preciso corrigir esses erros para que tais orações sejam bíblicas e fiéis.

Ore ao Deus verdadeiro

Primeiramente, muitas vezes nós oramos a Deus para prover nossas necessidades, mas confiamos num falso deus que alegadamente responderá a essas orações. Em nossa oração, chamamos a Deus de “Pai nosso”, indicando, com nossos lábios, “esperar do Seu poder infinito tudo aquilo que necessitamos para os nossos corpos e almas” (Domingo 46). Porém, em nossa vida política, pode ser que implicitamente atribuamos a algum ídolo essa capacidade de prover o que necessitamos para o corpo.

É verdade que Deus escolheu meios terrenos para esse fim – ele escolheu o trabalho, a atividade econômica, a transformação da natureza em bens e serviços que podem ser trocados voluntariamente para satisfazer às necessidades práticas que nós temos e muito mais. Não é idolatria orar para que Deus use o meio que ele mesmo escolheu para esse fim, mas é idolatria absolutizar esse meio, como a Fonte Última do nosso sustento.

O cristão que ora para ter comida no prato, mas que desperdiça o pouco que tem com apostas, jogos de azar e consumismo supérfluo está contradizendo com a vida o que seus lábios afirmam: “Pai nosso”. Que ele use com afinco seus bens e talentos, meios que Deus mesmo disponibilizou, como resposta a essa oração. E não é errado pedir ajuda à Igreja (especialmente à sua diaconia), ou a outras organizações cristãs que podem auxiliar tanto no curto como no longo prazo.

Também é fácil nos esquecer que, ao orarmos por isso, estamos orando pelas provisões básicas e por nossa sobrevivência. Muitos de nós oram por essas coisas com um certo conforto, mas é bom lembrar, a cada refeição que tomamos, que há várias pessoas passando fome, e que precisam de ajuda. Oramos para que Deus use os meios que ele disponibilizou para nos ajudar. Pode ser que você mesmo seja um meio para uma pessoa que tem orado. Pode ser que você precise pensar melhor em como servir ao próximo, seja vendendo, contratando, emprestando, doando ou até mesmo comprando.

Ore por aquilo que Deus ordenou

Em segundo lugar, um dos fatores fundamentais na oração que Deus escuta é que ela seja feita “por … aquilo que Ele nos ordenou orar” (Domingo 45). Não ore para ganhar na loteria. E também não ore para Deus abençoar uma outra pessoa que vai roubar de quem tem para dar a você, que não tem.

Essa é uma outra idolatria, que absolutiza o papel do governo civil na vida social. O governo civil é chamado para promover a justiça pública, e não para promover a redistribuição ou o igualitarismo. ao orar pelo governo e pelos governantes, esqueça o que você aprende na escola sobre o papel do governo. A oração que Deus responde deve ser feita por aquilo que ele nos ordenou orar.

Ore pela justiça pública. Ore para que Deus tenha misericórdia da sua terra. Ore para que ele estabeleça a justiça, especialmente no caso dos mais vulneráveis, que não têm como se defender. Ore para que ele traga justiça aos homicidas, ladrões e corruptos. Aos que cometem fraude e estupro. Aos que sequestram e aos que inflacionam a moeda.

Ore para que o governo seja eficaz naquilo que é biblicamente o seu papel. Não ore para que o governo seja eficaz naquilo que não é o seu papel. É verdade que muita gente não entende esse papel. Ore pelo trabalho de cristãos reformados que têm procurado esclarecer ao povo essas questões. Ore pelos institutos que ensinam o papel bíblico do governo. Ore para que o eleitor aprenda e mude sua postura.

Ore, também, por arrependimento. Arrependimento dos governantes que violam a lei, seja ela a lei da nação ou o princípio bíblico que limita o papel do governo. E, por que não, ore para que esse arrependimento vá além do campo social e atinja também a vida espiritual dos nossos governantes.

Eu já fui várias vezes à “oração vespertina” nas catedrais inglesas. Fiz isso várias vezes, mas ainda me impressiono quando escuto essas orações cantadas no meio da semana. A Igreja da Inglaterra ainda ora pela Rainha e pela Família Real. Ora pela salvação de suas almas. Ora para o Espírito Santo santificar as suas vidas. Ora para que cumpram bem o seu cargo. Ora para que tenham sabedoria piedosa.

O termo “piedosa” não é por acaso. Existe a sabedoria da desobediência antibíblica, existe a “eficiência governamental” para fazer o mal, que muita gente pede equivocadamente a Deus, e existe a sabedoria piedosa, em obedecer o mandato que Deus deu ao magistrado civil.

Eu gastei uma conferência inteira falando sobre para que serve o governo, e o que é legítimo e moral na política cristã. É claro que devemos orar, e é claro que muitas vezes nossa oração envolverá de alguma forma a vida política da nação. Mas oração é coisa séria, e deve ser feita da forma certa, informada por esses princípios bíblicos sobre o papel e a legitimidade do governo civil.

O Nosso Senhor teve que ensinar seus discípulos a orar. E o que ele fala sobre política na oração que ensinou? Ele ora a Deus: “venha o teu reino” e “seja feita a tua vontade na terra, como no céu”. Você pode colocar “justiça pública” como parte disso. Sobre as suas provisões e subsistência, que vão além da justiça pública, diga “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Diga isso ao seu Pai no céu, e não aos que ocupam os assentos do Congresso, do Senado e da Presidência.

Lucas G. Freire é editor do Política Reformada.

Bolha Econômica

por Lucas G. Freire

O governo Dilma anunciou, às vésperas da eleição, um pacote econômico que injetará mais moeda e crédito na economia. O objetivo do pacote é estimular o investimento e o consumo, trazendo um crescimento imediato a certos setores da economia.

O cristão não tem motivo prático ou moral para celebrar.

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Estado Regulador?

por Lucas G. Freire

Um artigo de Hélio Schwartsman na Folha de São Paulo defende uma tese interessante: o Estado brasileiro tem obrigado o consumidor a pagar o preço das regulações econômicas que, ironicamente, são feitas em defesa do próprio consumidor.

Por exemplo obrigar as companhias aéreas a providenciar hospedagem em hotel em caso de cancelamentos no voo acaba aumentando o preço da passagem aérea. Outro exemplo: a lei que tem sido discutida, proibindo a diferenciação de preços em compras pagas com cartão de crédito. Só alguns preços seriam aumentados (os pagos em cartão) e, com a regulação, é provável que todos os preços sejam aumentados para compensar, já que não podem ser diferenciados.

Até aí, Schwartsman acerta em cheio. Porém, ele começa o artigo praticamente pedindo desculpas por defender menos regulação. Ora, a economia brasileira é uma das mais reguladas no mundo inteiro. Não há por que pedir desculpas.

Pelo contrário: é preciso ser mais agressivo ao empurrar o Estado brasileiro de volta à sua esfera de autoridade.

Schwartsman acha que não é possível viver sem o Estado ditando em qual lado da estrada os carros devem dirigir, ou obrigando as pessoas a usarem papel colorido impresso pela Casa da Moeda para comprar e vender, ou determinando “convenções mínimas” para facilitar a interação entre as pessoas.

Isso é, na perspectiva histórica e prática, um equívoco. O Estado – essa comunidade política que reivindica o monopólio legítimo do uso da coerção no seu território – é uma forma relativamente recente de organização humana.

Antes do Estado-nação moderno, fruto da Revolução Francesa, já havia estradas, moeda e convenções mínimas para a interação social. Do ponto de vista histórico, existe, portanto, um grande erro nessa afirmação.

Além disso, existe também um outro tipo de erro. Do ponto de vista prático, é possível verificar como as pessoas resolvem seus problemas onde esses padrões não são providos.

Por exemplo, observações recentes em lugares onde as leis de trânsito são experimentalmente suspendidas confirmam que a segurança nas vias públicas melhorou ao invés de piorar. As pessoas passam a ter mais cuidado e estimam melhor o espaço utilizado por seu veículo. Elas negociam com os outros motoristas e, em geral, tornam-se melhores motoristas.

Um exemplo ainda mais interessante: uma das convenções mais complexas é a própria linguagem. A linguagem, tal como a utilizamos no dia-a-dia, desenvolveu-se historicamente como fruto de milhões de interações descentralizadas. Nenhuma linguagem planejada por um comitê de burocratas tem uma gramática ou vocabulário tão capazes de responder à constante mudança social como as línguas usadas espontaneamente de forma descentralizada.

Aliás, em diversas ocasiões, a mão do Estado na regulação desses padrões acaba atrapalhando. A história da inflação está aí para provar que a socialização da moeda tem dificultado ao invés de facilitar a vida econômica.

Como a linguagem, a moeda emergiu também por uso descentralizado e criativo em milhões de interações. Originalmente um bem mais útil que um mero pedaço de papel (como ouro ou prata), ela facilitou a vida econômica justamente por ser uma ferramenta constante de cálculo, fácil de transportar, maleável e com limites à sua falsificação. Desde que o socialismo monetário foi implementado, esses elementos foram perdidos, um por um.

Olhe para um país com hiperinflação e veja o que acontece: as pessoas espontaneamente (aliás, apesar da coerção governamental que obriga ainda a usar o papel-moeda hiperinflacionado) começam a usar um outro meio de troca, ou até mesmo recorrem ao escambo pré-monetário.

Ao contrário do mito contratualista que o Estado usa para se justificar, o Estado não cria a sociedade e a cooperação. Muitas vezes, a sua falha ou inferioridade inclusive deixa isso evidente.

Ao longo da era moderna, o Estado se agigantou sobremaneira, e usou intelectuais “moderados” como Schwartsman para persuadir o público a aceitar seu gigantismo. Agora, mesmo os “moderados” creem que o Estado foi longe demais. Sua reação, porém, é apática e desprovida de substância moral.

A política cristã, pelo contrário, afirma que o Estado deve se circunscrever à sua esfera de autoridade – a esfera da justiça pública.

Uma linguagem melhor, por favor

por Lucas G. Freire

Os jornais têm relatado que o juiz que negou liberdade a dois manifestantes dos Black Blocs utilizou, na sua decisão, uma frase de efeito empregada por comentaristas políticos de direita.

O juiz teria dito que os Black Blocs fazem parte da chamada ‘esquerda caviar’. O termo esquerda caviar, obviamente, não é neutro, nem do ponto de vista político nem teórico.

Espera-se dum sistema de justiça que ele seja politicamente e teoricamente neutro. Essa expectativa é ilusão. Um sistema de justiça ou promove a justiça (e, por isso, pode ser acusado de apoiar uma determinada perspectiva política e teórica) ou promove a injustica (e, por isso, pode também ser acusado de apoiar uma determinada perspectiva política e teórica).

Os revolucionistas esperam implantar sua revolução (seja qual for) e mudar o curso do sistema de justiça. Os que favorecem a situação atual esperam que o sistema de justiça mantenha a situação atual. A oposição, nos dois casos, denunciará esse uso ‘político’ do sistema de justiça.

Até aqui, nenhuma novidade. Porém, é possível uma terceira atitude, e é essa atitude a meu ver que deve marcar a política cristã.

Para começar, o fato de integrantes dos Black Blocs serem incoerentes com o ‘esquerdismo’ que defendem, ao ter acesso ao ‘caviar’ não deveria ter tanto peso no sistema judiciário. A hipocrisia do réu não o faz necessariamente mais ou menos culpado.

Em resposta, a política cristã aprecia e honra o serviço desse juiz à nação quando ele promove a justiça pública e combate a violência, a agressão, o roubo, o vandalismo dos Black Blocs.

A política cristã vai ainda mais longe e mantém o direito do grupo se manifestar de forma não-violenta (coisa que o juiz parece ter negado, por conta da má conduta de vários integrantes do grupo). Isso é essencial: se um grupo tem uma certa causa, é na esfera pública que essa causa poderá ser refutada, exposta e rejeitada.

O que homens como Althusius e Milton afirmaram na época da Reforma Protestante vale também para essa situação: podemos discordar do discurso, e a melhor forma para que ele suma do mapa é exatamente dando-lhe o espaço necessário para ser razoavelmente avaliado pela audiência, e adequadamente rejeitado.

Falando em discurso, um outro ponto a ser levantado é que o uso de chavões em geral obscurece o debate, embora eles se proponham a simplificá-lo. O termo ‘esquerda caviar’ tem sido empregado na mídia brasileira como um chavão mágico que supostamente explicaria vários fenômenos.

Esse tipo de dinâmica não é unilateral. A ‘esquerda’ tem seus cacoetes. Já ouviu falar de ‘coxinha’, de ‘privilegiado’, ou de ‘alienado’? A ‘direita’ tem os seus. ‘Marxista cultural’. Aliás, veja como a própria definição de ‘direitista’ e ‘esquerdista’ é plástica. Para o ‘esquerdista’, qualquer um à sua direita é um direitista. E vice-versa.

Só que esquerda-direita é uma dicotomia unidirecional. Ela desenha uma tabela com duas colunas, e lista os posicionamentos ‘direitistas’ e ‘esquerdistas’ para cada assunto. Israel? Direita. Palestina? Esquerda. Estados Unidos? Direita. Cuba? Esquerda. Se os problemas fossem assim tão simples, já teriam sido resolvidos.

Reconhecendo a complexidade da esfera pública, a política cristã tenta se desvencilhar dessa dicotomia. O foco principal da política cristã deve ser a justiça pública. Onde houver iniciação de agressão, o cristão denunciará tal injustiça.

Por isso, a política cristã se propõe a criar um vocabulário novo, e um novo ambiente de civilidade na esfera pública. E, talvez, o cristão poderá tentar evitar os chavões clássicos e enxergar o interlocutor como um ser humano tão complexo como a realidade que ele tenta comentar. Uma pessoa de carne e osso, nem sempre coerente. E isso talvez sirva de ponte entre um lado e outro do espectro político.

Se não servir, ao menos será uma forma dupla de amar o próximo como a nós mesmos. No debate privado, isso significa ouvir e não caluniar. Na esfera pública, isso significa concentrar a política na promoção da justiça pública, coisa que um juiz cristão ou não-cristão, esquerdista ou direitsta, é capaz de fazer se quiser, independente de qual seja seu livro de cabeceira.

Viaduto assassino

por Lucas G. Freire

Caiu em Belo Horizonte um viaduto, que fora construído às pressas para a Copa do Mundo, como parte do programa da prefeitura local de ampliação do acesso ao estádio de futebol.

O viaduto matou pelo menos duas pessoas, e quem sabe quantas tiveram algum machucado por conta do acidente. O caso do viaduto ilustra um problema trágico por trás da distorção do papel do governo na nossa sociedade.

Ideias têm consequências, e nesse caso, uma má ideia sobre o papel do governo civil levou a essa consequência trágica. O problema é muito mais profundo do que uma mera lambança da construtora.

Existem várias esferas da vida humana. A esfera da justiça pública opera segundo a lógica da coerção legítima do governo para combater a iniciação criminosa da violência. Já a esfera que cabe às empresas que constroem viadutos está mais diretamente sujeita às normas da alocação de recursos econômicos escassos.

Idealmente, o governo estaria usando a sua coerção legítima para combater larápios, estupradores e homicidas, dentre outros, e a empreiteira que faz viadutos, por sua vez, estaria sujeita às regras de viabilidade econômica dum projeto.

Isso incluiria o fato dos viadutos ficarem de pé ou não. Uma empreiteira, ao fazer seu serviço malfeito, perderia a demanda e, se não melhorasse bastante (e superando em muito as concorrentes que não cometeram o mesmo erro), dificilmente continuaria no ramo.

Acontece que na nossa sociedade não é assim que tem funcionado. O governo, que porcamente faz seu papel de justiça pública, decide que precisa ser médico, pai, professor, organizador de eventos (como a Copa) e engenheiro.

Com isso, o cálculo econômico fica distorcido, pois qualquer que seja a empresa contratada para fazer a obra (se não for um ramo do próprio governo, em geral, tende a ser o primo de alguém no governo), ela acaba ganhando alguma imunidade contra a lógica que é própria à sua esfera. Ela passa a contar com a “ajudinha” do poder de coerção e compulsão do governo.

Aí, onde havia um incentivo para fazer um serviço bem-feito, passa a existir um incentivo a implementar qualquer maluquice com nome de “política pública” do governo.

Isso inclui a política pública de organizar eventos, como a Copa do Mundo. Muita gente está convencida de que precisamos do governo provendo todas as coisas, caso contrário não haveria estradas, viadutos e nem mesmo Copas do Mundo.

O caso do viaduto assassino em Belo Horizonte está longe de ser uma lição completa. Existem ainda muitas perguntas sem resposta, enquanto o caso ainda se desenvolve e é investigado.

Porém, uma pergunta com resposta é: sem o governo-promoter-de-eventos, o viaduto assassino teria existido? Sem o governo-engenheiro, o viaduto assassino teria sido feito da mesma forma?

Muito provavelmente, não. Talvez jamais se pensaria em construir um viaduto ali. Talvez sim, mas com a decência mínima duma obra que, embora superfaturada e atrasada, ao menos não cairia em cima dum ônibus, matando transeuntes inocentes.

Porém, podemos sonhar mais alto e pensar num mundo onde as ordenanças da criação de Deus sejam mais respeitadas, onde o governo se restrinja a promover a justiça pública e os projetos para viadutos sejam sólidos, tanto do ponto de vista econômico como técnico e estrutural.

Algumas pessoas ainda ficam na dúvida se uma política cristã é viável. Por que o cristão deveria se preocupar com a política?

As duas vidas que poderiam ter sido poupadas me parecem ser uma resposta bastante persuasiva. Vidas criadas à imagem e semelhança do próprio Deus. Vidas que valem muito mais que mil Copas do Mundo.

Podcast: Política Reformada e Reforma21

Agradeço imensamente à equipe do Reforma21 pela conversa que tivemos depois de uma bateria de conferências e palestras sobre a visão cristã e reformada da política.

Embora o tópico seja vasto e complexo, espero ter sido capaz de resumir corretamente os pontos principais tratados nas conferências em Porto Velho e Belo Horizonte.

O que você achou do podcast? Que tal deixar um comentário aqui?

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