por Lucas G. Freire
Estarei em breve apresentando um trabalho na Universidade de St. Andrews na Escócia sobre algumas ideias políticas no mundo antigo. Os antigos acreditavam que existia perversidade e mal na política, e que isso deveria ser evitado. De certa forma, eles estão mais próximos da verdade que muita gente ‘científica’ hoje em dia.
Os reis do Oriente Próximo não acreditavam que tinham o poder absoluto. Embora alguns desses reis de fato tivessem bastante poder, chegando a ponto de serem idolatrados, eles ainda assim entendiam que deveriam responder por suas ações.
Esses reis da antiguidade se viam como responsáveis, diante dos seus deuses, pelo bem-estar do povo governado. Além disso, mesmo um rei poderoso que conquistava o território de outros reis, impondo-lhes tributo, deveria respeitar os limites estipulados pelos juramentos feitos a esses reis subordinados.
Caso o juramento fosse quebrado, ou o rei fosse muito injusto e parcial ao julgar o seu povo, ele cria que seria punido pelos deuses – ele, sua família e todo o país – com maldições diversas, como, por exemplo, a fome, a pobreza e a derrota na guerra.
Alguns achados arqueológicos registram a oração de alguns reis, reconhecendo essa ligação entre o mal que fizeram e o mal que lhes sobreveio. Uma oração do rei dos hititas, por exemplo, suplica aos deuses que suspendam uma epidemia e uma invasão estrangeira que estão prestes a devorar o país inteiro.
Na corte, os reis dispunham de profetas, que tinham a responsabilidade de falar inclusive contra o rei, mostrando que as políticas dele iam contra a justiça exigida pelos deuses, ou que eram excessivamente agressivas contra os reinos adversários.
Mais tarde, quando os impérios da antiguidade começaram a se formar, esse sistema foi subvertido. Na Assíria, por exemplo, os deuses eram vistos como sempre favoráveis ao país. Os profetas da corte se tornaram meros bajuladores do monarca. O rei estava praticamente isento de responder por seus atos.
Mas isso era ilusão. Havia um limite externo. Um império devorava o outro. Havia, também, um limite interno. Um rei arbitrário e injusto logo era substituído por um golpe. Em vários casos, a própria família do rei o matava, para que fosse substituído.
A ideia geral era de um universo normativo. Isto é, o universo não é arbitrário. Existem normas que moldam o mundo à nossa volta.
Embora essa ideia esteja correta, sua aplicação por esses povos politeístas foi pesadamente criticada pela Bíblia. No Salmo 82, por exemplo, podemos ler:
Deus está na congregação dos poderosos;
julga no meio dos deuses.
Até quando julgareis injustamente,
e aceitareis as pessoas dos ímpios?
Fazei justiça ao pobre e ao órfão;
justificai o aflito e o necessitado.
Livrai o pobre e o necessitado;
tirai-os das mãos dos ímpios.
Eles não conhecem,
nem entendem;
andam em trevas;
todos os fundamentos da terra vacilam.
Eu disse: Vós sois deuses,
e todos vós filhos do Altíssimo.
Todavia morrereis como homens,
e caireis como qualquer dos príncipes.
Levanta-te, ó Deus,
julga a terra,
pois tu possuis todas as nações.
Mesmo aqueles povos, que acreditavam num universo normativo, estavam equivocados no seu conceito de justiça. O autor do Salmo 82 não hesita em afirmar que, em última análise, Deus vai julgar a terra, e impera sobre todas as nações (ver, por exemplo, 2Re 19.35-37).
O cristão afirma a existência de normatividade no universo. A vida social, política, estética, jurídica, cultural, e a assim por diante, acontece dentro de uma malha de normas que foram colocadas no mundo por um Criador, a quem todos nós respondemos por nossos atos.
A intriga e a maldade na política não são novidade. A embriaguez com a concentração de poder também não. O que é novidade é a visão do universo como algo arbitrário e sem propósito.
O discurso político atual tem girado em torno da pergunta: “o que funciona?”, ao invés de girar em torno da pergunta: “o que é legítimo fazer?” Os antigos faziam essa segunda pergunta.
Do ponto de vista cristão, sua resposta foi errada, mas ao menos a escolha da pergunta foi adequada. E, já que estamos falando não de normas isoladas, e sim duma malha normativa, responder bem à pergunta sobre o que é “legítimo” é responder bem à pergunta sobre o que “funciona”.
Na política, o que é “legítimo” é um governo limitado ao seu papel de promover a justiça pública. Isso, não por coincidência, é também o que “funciona”. O Estado-babá, o Estado-empresário, o Estado-cientista – nada disso é “legítimo” nem “funciona” no longo prazo.
O cristão confessa a existência dum universo normativo. Por isso, sua política é também normativa. Essa lição dos antigos nós podemos tirar. E não custa nada ir além, olhando para a Sagrada Escritura para evitar o erro dos antigos. E, obviamente, é preciso também evitar o erro dos modernos.
Caro Lucas,
Já havia lido seu artigo no Academia.edu e, apesar de minha ignorância em RI, gostei muito.
Agora, esta versão simplificada e aplicada está simplesmente excelente. Considero-a o melhor texto aqui do blog, e certamente servirá como uma base mais geral para o leitor compreender as aplicações que temos feito.
Fica aqui meu elogio público e merecido ao seu trabalho. Que o nosso Deus, a quem damos toda honra e glória sempre, continue abençoando o seu esforço – e o de todos nós – para aplicar a cosmovisão reformada aos desafios de nossas vocações.
Abraço.
Obrigado e grande abraço! 🙂