Idolatria estatal e tentativas de calar a igreja

Sobre a Declaração do Congresso Vida Nova 2016 (Parte 2)

Vimos que a Declaração do congresso Vida Nova sobre a atual conjuntura sociopolítica da nação tem quatro partes distintas. Duas delas foram comentadas na primeira parte da nossa análise. Após isso, a Declaração inclui uma seção de protesto, falando de certos fatores que seus signatários repudiam. E então, o documento faz uma convocação, chamando a igreja a agir.

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Na seção de protesto, a Declaração passa a listar seis pontos marcados pelo verbo “repudiar”. Os seis fatores repudiados são: a idolatria ao Estado, qualquer tentativa de silenciar a igreja na esfera pública, o silêncio dos que deveriam fazer uma crítica profética à atual situação, a corrupção, a relativização da Constituição Federal e a desarmonização do executivo, legislativo e judiciário.

Idolatria ao Estado

O primeiro ponto diz respeito à idolatria ao Estado, ligando tal ato de idolatria à “iniquidade, conivência, omissão e dissimulação da impiedade”. O cristão reformado está acostumado a confessar a soberania absoluta de Deus sobre tudo e todos. Uma implicação dessa confissão é que existem limites naturais e normativos para todo poder e autoridade nesta terra. Os limites naturais são aqueles inerentes ao caráter humano de qualquer um que ocupe um ofício ou cargo de liderança. Tal pessoa é falha, num mundo afetado pelo pecado, mas também limitada pela condição de criatura. Mesmo antes do pecado afetar o mundo, vemos que o ser humano era limitado de várias formas, por ser criatura, e não Criador. Porém, com a presença do pecado na nossa forma de pensar e agir, existe uma limitação (e, muitas vezes, uma força contraprodutiva) em qualquer atividade humana envolvendo um ofício ou cargo de autoridade e liderança. Deus, pelo contrário, por ser Criador e por ser santo e perfeito, não possui tais limitações: Ele é plenamente capaz de ter autoridade absoluta sobre tudo e todos, e de fato a tem.

Qualquer pretensão contrária é rejeitar a própria estrutura da criação. É como se eu decidisse ignorar que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo e, correndo contra uma parede, tivesse a pretensão de atravessá-la sem me machucar e sem quebrar a parede. Da mesma forma, a idolatria ao Estado parte da ilusão, por exemplo, de que os burocratas do Estado são divinos, e têm a capacidade de superar sua limitação de criatura falha, afetada pelo pecado, e de fazer cálculos políticos e econômicos complexos que permitiram alegadamente ao governo de fato ser o provedor e mantenedor de todas as coisas. Não é preciso mencionar os horrores que os governos com tal pretensão, como a Coreia do Norte, fazem seus cidadãos sofrerem para que o ponto fique claro. Existe, portanto, um limite natural a toda e qualquer autoridade nesta terra e, comparada à autoriade de Deus, ela é naturalmente limitada.

Além disso, é óbvio (mas não custa lembrar) que existem também limites normativos à autoridade do governo civil. Repare no civil: não é um termo de redundância, e sim uma palavra que se acrescenta aqui para deixar claro o seguinte: o Estado está longe de ser o único governo que Deus colocou na sociedade para o nosso bem, e para combater o mal. Deus também colocou o próprio autogoverno do indivíduo sobre seus impulsos, o governo da família e a autoridade dos pais e assim por diante. Há um governo diferente em cada ofício para cada tipo de esfera da vida. O maestro governa sua orquestra, e o professor, sua sala de aula. O professor não governa a família dos seus alunos, a não ser que seja de fato o pai deles, e o maestro não tem autoridade em outra esfera sobre os musicistas de sua orquestra, a não ser que seja, por exemplo, um oficial superior numa banda militar. Não é preciso ser um gênio para entender que há uma pluralidade de autoridades coexistindo na vida de cada um, mas é necessário ser um gênio do mal para persuadir as pessoas de que a autoridade do Estado tem algo “especial” e certa prerrogativa e superioridade sobre as demais esferas.

E, no entanto, cá estamos, praticamente convencidos de que deve ser assim. Um lado do espectro político quer sequestrar o Estado para impor de cima para baixo uma transformação cultural que vai ajeitar a sociedade brasileira, levando-a de volta aos “bons e velhos tempos”. O outro lado deseja endeusar o Estado porque acha que ainda estamos nos “velhos tempos” e precisamos que os burocratas imponham de cima para baixo uma agenda “progressista”. E isso é só o aspecto cultural. Quando olhamos para todos os aspectos da vida em sociedade, vemos que a idolatria do Estado tem pressuposto que essa instituição social deve abraçar o mundo, por assim dizer, e deve tomar parte em tudo o que acontece e tudo o que se faz. Não é de surpreender, portanto, que o Estado acaba fazendo mal a sua tarefa de promover a justiça pública e que, muitas vezes ele mesmo se torna promovedor de uma infinidade de coisas não-estatais ao mesmo tempo em que viola a norma da justiça pública. E, assim, o governo se transforma num covil de salteadores. “Mas não tem problema! Afinal o Estado, que é nosso pai e mãe, nosso médico, nosso professor e o consumador de nossa fé (sic.) está fazendo grandes avanços na agenda que queremos promover! Podemos ignorar os meios, desde que o fim seja obtido.” Por conta de nossa idolatria ao Estado, passa a existir uma conivência e omissão para com a iniquidade e dissimulação da impiedade.

Tentar calar a igreja

O segundo ponto a ser repudiado é a tentativa de silenciar a igreja, empurrando-a para a esfera privada e tirando-a da esfera pública. Aqui, temos duas ideologias que no tempo contemporâneo se reforçam. Uma afirma que religião é o ópio das massas e que só serve para reforçar a exploração do sistema atual. Essa ideologia coletivista quer uma revolução, mas a religião é parte do sistema que mantém as massas sob controle e que evita que essa revolução aconteça. A outra ideologia vem duma matriz diametralmente oposta, do pseudoliberalismo contemporâneo, que afirma que tudo o que é público deve ser baseado no “mínimo denominador comum” entre todos os indivíduos da sociedade. E por causa disso, e por causa da variedade de opiniões religiosas na soicedade, a esfera pública deve ser “limpada” de qualquer influência religiosa: a religião secularista é a única que deve ter lugar no Estado moderno.

O sujeito que quer silenciar a igreja porque deseja uma revolução e que afirma ser a religião o ópio das massas não se dá conta de que as massas são oprimidas atualmente pela ideologia que ele mesmo promove, e que essa ideologia é a religião (da idolatria ao Estado ou à luta de classes) que tem mantido as massas no escuro. O cristão reformado entende que a situação atual não é boa, e que as massas têm sido oprimidas por um sistema totalitário, e que esse sistema promove uma certa religião que mantém as massas no lugar (junto com pão e circo). O sintoma é esse, mas o diagnóstico é diferente para o cristão reformado, pois ele crê que o evangelho e o governo de Jesus Cristo sobre tudo e todos é a única cura cabal para o problema da opressão e da falsa consciência que essa falsa religião estatólatra promove na nossa sociedade. A única “revolução” capaz de lidar com esse problema de forma efetiva é a “revolução” espiritual do redirecionamento do coração humano para que deixe de ser rebelde ao seu Criador e passe a viver uma vida de piedade, amor e gratião a Ele, obedecendo Sua lei. Por isso, a igreja precisa de sua voz, para proclamar a boa-nova da redenção em Cristo pelo poder do Espírito Santo, e para denunciar todo falso esquema e falsa religião que é de fato um ópio para as massas. A igreja deve, sim, ser livre para proclamar que esse redirecionamento deve ter efeito prático na vida de cada um, e na vida da sociedade que se converte como um todo.

Já, do outro lado, o sujeito que quer silenciar a igreja ao empurrá-la para a esfera privada porque a pública deve ser reduzida ao mínimo denominador comum entre todo tipo de filosofia de vida e preferência – esse sujeito, do ponto de vista cristão e reformado, não se dá conta de que não existe neutralidade religiosa na vida. Existem alguns no seio da igreja que pressupõem exatamente isto: que existe sim a possibilidade de neutralidade religiosa, e que a igreja não deve se “misturar” com as coisas “deste mundo”. É preciso ter paciência com essas pessoas, pois elas desejam manter a integridade das tarefas da igreja, entendendo que ela deve se concentrar na proclamação do evangelho, mas isso não quer dizer que o cristão não deva procurar formar uma opinião bíblica e adotar um curso de ação conforme as Escrituras na sua atuação política. Negar isso é afirmar que deve haver um certo “vácuo” no compartimento da vida cristã que experimenta a política e a vida social no dia-a-dia, e que esse “vácuo” é religiosamente neutro. Esse tipo de pensamento coloca combustível no dínamo dessa religião rival, do humanismo secular, que deseja expulsar a religião (e, portanto, a igreja) da esfera pública. Porém, não há neutralidade. A vida, toda a vida, é religião. O cristão reformado afirma que tal tentativa de silenciar a voz da igreja na esfera pública deve ser alvo de repúdio.

Lucas Freire é editor do Política Reformada.

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