por Lucas G. Freire
Nesta época de polarização política esquerda e direita, vermelhos e azuis, muita coisa interessante tem aparecido entre os jornalistas e comentaristas. Uma delas é o senso de emergência, de que o nosso país está sob ameaça e precisa reagir de alguma forma.
Os vermelhos desejam um tom ainda mais vermelho na nossa política. Os azuis desejam mudar a cor do país. Não sei o que desejam os “nem lá nem cá” que preferem o verde-e-amarelo. De qualquer forma, o discurso da emergência e da ameaça está lá.
Entre a normalidade e a emergência, existem ao menos duas mudanças de nível na discussão pública. A primeira, é a politização, quando um assunto não é da conta do governo e passa a ser. Um exemplo é a educação dos filhos, que até pouco tempo (relativamente) era uma prerrogativa dos pais, e passou (principalmente após o totalitarismo de Bismarck no século XIX) a ser regulada pelo governo.
Uma das consequências negativas da politização é a distorção do caráter intrínseco de uma esfera não-governamental, que passa a ser subserviente à esfera governamental. No exemplo da educação, ao invés de educar, nossas escolas reguladas pelo governo têm operado como adestradoras de um certo tipo de cidadão. Obviamente, é e se esperar algo do tipo.
Politização é o primeiro nível de reajusta de uma questão específica. Certas coisas precisam ser politizadas – elas precisam ser objetos de discussão de política pública operando nos moldes de um governo democrático. Talvez não a educação no sentido estrito e clássico (e o MEC vai me atirar a primeira pedra!), mas algo como o crime de agressão, ou a defesa nacional.
Porém, politizar um certo assunto significa sujeitá-lo à deliberação e à ação que cabe nas regras do jogo. Muita gente acredita que certas questões são tão urgentes e importantes que as regras do jogo precisam ser suspendidas e o assunto, remediado. Nesse caso, estamos falando de uma passagem, que muitos chamam de securitização.
Na sociedade e na política, temos vários valores e coisas que prezamos. A própria democracia pode ser um exemplo. Ou a economia nacional, o meio-ambiente, a soberania do país, a diversidade cultural, a vida e assim por diante. Securitizar algo é retratar uma certa questão como ameaça a uma coisa ou valor que julgamos ser importante.
É assim que funciona: alguém fala que X é uma ameaça a Y, e que Y é algo que vale a pena proteger. Se X acontecer, Y corre grave perigo. Portanto, temos uma emergência. Já que é urgente, não há tempo para o processo político. Precisamos, para lidar com X, de um regime de exceção.
Esse “alguém” que tenta securitizar a questão X é uma pessoa ou agência vista como relevante. É uma pessoa ou agência que importa, que tem certa autoridade. No caso do meio-ambiente, pode ser um cientista. No caso de uma invasão estrangeira, pode ser um general.
Um país com instituições e tradições saudáveis minimiza a sua política de exceção. Com esse princípio, nós devemos concordar. Nenhum poder pode ser absoluto, e se um governo tentar se transformar num poder absoluto e tirânico, ele precisa ser contido.
Idealmente, um país terá leis e princípios que façam a tirania ser algo bastante difícil, senão impensável. Isso, independente da direção política que se quer dar a essa tirania (esquerda ou direita). Independente de ser vermelha ou azul.
Um dos grandes princípios da política reformada é a afirmação de que a obediência que se deve à autoridade não é absoluta, pois nenhuma autoridade é absoluta. Porém, a resistência não é revolucionista, pois existem autoridades intermediárias que são mais efetivas e mais legítimas para resistir que o populacho descontrolado.
Na nossa situação atual, um lado tem falado que a ordem pública e a segurança estão sob ameaça, e que é preciso uma tirania azul para restaurar o país. Outro lado tem falado que as minorias e os oprimidos precisam duma tirania vermelha para reverter sua situação.
Entretanto, da última vez que conferi, nossas instituições, tradições e leis foram (ainda que de forma imperfeita) desenhadas especificamente para lidar com esses dois tipos de problema. É verdade que elas precisam de reforma – e a via da politização serve para isso também. É também verdade que elas têm sido mal aplicadas. Mal? Muito mal.
Por isso mesmo, convido você a pensar na via normal do debate público. Convido, ainda, a ajudar a restaurar a civilidade nesse debate. Quantos pontos interessantes têm sido levantados dos dois lados, mas ignorados pelos oponentes. Por quê? Porque, com o senso de emergência – com a tentativa de securitizar um assunto – vem também o descontrole e o desespero.
Não é hora de desespero. Nem de virar a mesa. Temos uma democracia ainda jovem, que precisa melhorar. Temos políticos corruptos, que precisam ser aposentados. Temos, também, leis e princípios que são mal aplicados. Algumas dessas leis são injustas ou ineficientes, e precisam ser discutidas e melhoradas. Mas isso não se faz em estado de guerra. Nem em guerra civil.
Um fato curioso sobre a securitização é que ela também é relativa. Ela só “cola” se o público acreditar no discurso securitizador. Então, a verdade é que você tem uma escolha. E, com você, o resto da população. Pode dar ouvidos e apoiar a suspensão das regras do jogo, chancelando a (anti)política do desespero? Vai ceder à tentação revolucionista que, vira e mexe, destroi nossa nação a cada fase da história?
Proponho um caminho melhor, o caminho da prudência. É um caminho que, longe de piorar as coisas, vai acabar reforçando o que existe de bom nas nossas instituições e leis. Vai desenvolver ainda mas a busca pela justiça pública que esses elementos refletem, ainda que imperfeitamente.
Este ano é ano de eleições. Lembre-se de quem está no poder. Lembre-se que, sem ajuda do eleitor, seria muito mais difícil para eles estarem ali. Lembre-se, também, que a política da exceção, do desespero, do revolucionismo, tende a piorar muito mais as coisas, ainda que alguma melhoria possa acontecer no futuro distante. Lembre-se que legitimidade também conta. Lembre-se de votar bem.
E (por que não?) lembre-se de pelejar com civilidade, mas com fervor honesto na batalha das ideias. Afinal, o que existe de ruim na nossa situação foi somente uma ideia ruim algum tempo atrás.
Pois é Lucas, agradeço pelo texto, muito bem escrito! A propósito, a partir da noção de prudência (uma noção conservadora que tenho simpatia), não seria a proposta de “leis anti-terroristas”, ante a óbvia incivilidade Black Bloc, algo que poderia respingar em manifestações políticas legítimas? Não poderia este clima de “securitização” provocar uma intransigência estatal a manifestações públicas legitimamente democráticas?
Sim!
Olá Lucas, tudo bem?
Tenho lido com bastante satisfação os textos que aqui publicas, e tenho encontrado ajuda nos temas que trata.
Gostaria de alguma recomendação de obras para leitura sobre política reformada. Tenho lido Dooyerweerd – mas apenas comecei.
Obrigado e parabéns pelo site.
A. Kuyper “Calvinismo”
A. Janse “Que es la politica Cristiana?” (Felire)
G. van Prinsterer “Incredulidad y Revolución” (Felire)
C. Van Dam “La Teología de la Liberación” (Felire)
No site da Felire, pode encontrar em pdf.
Muito obrigado, Lucas! O assunto muito me interessa. Deus te abençoe!
Relacionando o assunto com a nossa última conversa – eu diria que a dominação de uma esfera sobre outra é um assunto que, em princípio, deve ser politizado. 😀 Mas enfim, que artigo jóia. Parabéns!
Parabéns pela saúde de suas palavras. Oportuníssimas diante do estado de coisas que temos visto principalmente em solo brasileiro. Um abraço.