Esta é a primeira parte de um estudo sobre certos assuntos claramente relevantes à política tratados no Catecismo de Heidelberg das igrejas reformadas.
por Lucas G. Freire
O Catecismo de Heidelberg, aprovado em 1563 pelo Sínodo das igrejas reformadas no Palatinado (parte do antigo Sacro Império Romano-Germânico), é ainda hoje um dos documentos confessionais das igrejas reformadas por toda parte.
Faz parte das chamadas “Três Formas de Unidade”, que incluem também a Confissão Belga e os Cânones de Dordt. Juntos, os três documentos resumem a explicação das igrejas reformadas acerca da doutrina e da vida cristã segundo descritas na bíblia.
Esse documento confessional reformado é dividido em 52 lições para os Domingos do ano. Quanto à política, dois textos saltam à vista no Catecismo de Heidelberg. Os dois dizem respeito à exposição do Decálogo, ou “Dez Mandamentos”.
O Catecismo explica a condição caída da natureza humana, descreve a salvação pela graça em Cristo Jesus junto com os fundamentos da fé da igreja, e passa a falar a respeito da vida de gratidão que todo cristão deve levar.
A explicação do Decálogo diz respeito a essa última parte, a vida de gratidão. As passagens que mencionam aspectos da vida política, selecionadas para análise aqui, expõem a confissão da igreja a respeito do quinto (Domingo 39) e do oitavo mandamentos (Domingo 42).
Leiamos, primeiramente, a explicação do quinto mandamento – “honra teu pai e tua mãe”.
104. O que Deus exige no quinto mandamento?
R. Devo prestar toda honra, amor e fidelidade a meu pai e a minha mãe e a todos os meus superiores; devo submeter-me à sua boa instrução e disciplina com a devida obediência, e também ter paciência com seus defeitos; porque Deus nos quer governar pelas mãos deles.
O princípio geral aqui é o da atitude normal que devemos ter de respeito à autoridade. As palavras da confissão não carecem de maiores explicações, mas é importante notar alguns pontos que estão apenas implícitos.
Primeiramente, convém notar que a autoridade dos pais é ilustrativa de outros tipos de autoridade: “todos os meus superiores”. Em segundo lugar, essa autoridade tem jurisdição limitada: “meu pai” e “minha mãe”. Terceiro, o escopo de autoridade também é limitado, pois há vários tipos de “superiores”.
Poderíamos exemplificar com a autoridade acadêmica do professor na sua sala de aula, do juiz no seu tribunal, e do maestro na sua orquestra. O tipo de honra e obediência que são devidos, portanto, dizem respeito ao tipo de autoridade em questão.
Observe, por exemplo, que “Deus nos quer governar” através dessa diversidade de autoridades. À parte do próprio Messias ou Cristo, Deus não escolheu um só tipo de autoridade e uma só classe de pessoa para reinar sobre todas as coisas.
Assim, ele delega “setores” ou “esferas” de autoridade a diferentes tipos de posições. O dever do cristão segundo confessa a igreja neste Catecismo não é meramente o de obedecer ou mesmo “ter paciência com seus defeitos”. É também o de aceitar instrução no assunto colocado.
Assim, por exemplo, um membro de igreja deve buscar e receber instrução a respeito do seu papel e do papel da liderança da igreja local nessa relação específica de autoridade. Procurar se informar dos “termos” dessa relação é fundamental, inclusive porque é preciso esclarecer qual é o escopo e limite dessa relação: nenhuma autoridade terrena é, nem deve ser, absoluta.
A propósito, o assunto não é esgotado pela confissão da igreja reformada neste Catecismo. Essas breves palavras a respeito do quinto mandamento expõem o princípio geral por trás do mandamento de honrar pai e mãe.
Implicitamente , essas palavras afirmam, também, que a obediência diz respeito à natureza da relação de autoridade em questão, e que nenhuma autoridade debaixo de Deus é total e sem reserva alguma.
O trabalho Política e o Catecismo de Heidelberg (Parte 1) de Lucas G. Freire foi licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição – NãoComercial – SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
O papel do governo seria o de criar leis de convivencia mútua entre as esferas e de punir a esfera que faltasse com essa lei?
Prezado Ismael,
Obrigado pela pergunta. Se por “governo” você quer dizer governo dos pais em casa, dos professores na sala de aula, dos presbíteros na igreja, e assim por diante, o papel tem a ver com o governo da “lógica interna” da esfera correspondente, tendo em vista o fato de sua autoridade e jurisdição serem limitados ao “escopo” e “nível” dentro dessa esfera.
Se você quer dizer apenas “governo civil”, então o mesmo argumento se aplica, mas limitado à justiça pública. Porém, isso às vezes implica restringir o abuso de poder dentro de outras esferas. Por exemplo: se um pai agride a esposa e filhos, aquela agência chamada “governo civil” que tem o poder da espada para punir os agressores tem o direito de exercer esse poder de coerção para proteger os inocentes e castigar o lado culpado. Mas isso ainda é prerrogativa do “governo civil”, sem invasão da esfera da autoridade paterna e materna sobre o lar. Se o governo civil, por outro lado, estivesse ditando o que os filhos deveriam comer, o que deveriam estudar, e assim por diante, haveria uma invasão inaceitável.
O que você pensa sobre alteração feita no Artigo 36 da Confissão Belga em 1905? E sobre as alterações feitas nos capítulos XX, XXIII e XXXI da Confissão de Westminster?
Prezado Frank,
Obrigado pela questão. Digo três coisas a respeito. Primeiro, que o cristão reformado confessional hoje estará mais provavelmente pactuado com igrejas que confessam a fé conforme as alterações, do que com as poucas que mantiveram o formato original. Cabe a esse cristão entender que os demais, mesmo sendo uma pequena minoria ligados às confissões antigas, não deixam de ser cristãos por motivo dessa divergência.
Em segundo lugar, é importante entender o contexto pactual dessas diferenças antes que sejam discutidas. O cristão pactuado à igreja reformada e confessional entende a igreja, e não o teólogo X ou Y, ou o indivíduo, por “coluna e baluarte da verdade”. Portanto, caso deseje questionar qualquer ponto da fé que até então confessava, deve se dirigir à autoridade eclesiástica da igreja local à qual está pactualmente vinculado a fim de buscar instrução, e não publicar sua divergência para o mundo inteiro. Esta é uma implicação da confessionalidade que infelizmente temos perdido no contexto brasileiro por várias questões.
Em terceiro lugar, por outro lado, se a igreja concluir, com oração e jejum, com exame das Escrituras, e com o procedimento correto, que, como igreja, ela tem confessado uma inverdade nos seus credos, ela deve de fato tomar as medidas necessárias para alterar as confissões. Não digo os artigos básicos da fé cristã, mas sim esses artigos de aplicação. O que não pode é confessar uma coisa da boca para fora e na prática demonstrar que não é essa a sua fé.
Note que eu não entrei no mérito dos artigos e capítulos mencionados. A respeito destes, em termos de conteúdo me parece que as versões posteriores (como a Igreja confessa hoje) defendem um magistrado civil menos inflado que antes, sem poder de natureza eclesiástica, mas que se fizer sua tarefa mais limitada de promover a justiça pública ainda assim acabará ajudando o avanço da igreja. As versões atuais parecem contrariar o princípio de uma Igreja Nacional ou Igreja Estatal, mais que as versões antigas. O comentário que eu faço é a respeito do conteúdo. Não sou eu quem vou “julgar” o mérito da alteração, estando vinculado à Igreja de Cristo que confessa as doutrinas no seu formato atual. Mas também não sou eu quem vou “julgar” o status da fé dos que permanecem com as igrejas que confessam o formato antigo, pois não sou eu quem detenho as “chaves do céu”.
Espero que essa resposta, menos direta, ajude a mostrar como uma abordagem “pactual” a questões confessionais seria aplicada, tanto nessa como em outras possíveis divergências. Tendo tentado ilustrar isso, paro por aqui.
Grato,
Lucas.
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